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Eugênio Bucci

 O Estado se ajoelha para o capital e ainda abana o rabinho. A ciência, para se fazer ouvir, precisa enviar representantes aos programas de celebridades na televisão, onde disputa espaço com o sensacionalismo mais torpe e as frivolidades mais fúteis. A política perdeu os laços que um dia teve com o argumento racional; agora, se quiser alcançar o público, tem de contratar cantores beócios, ainda que afinados, e empacotar sua mensagem em versos lacrimosos e melodias previsíveis. Assim caminha a humanidade – para a extinção.

Em poucas palavras, este é o recado essencial do filme Não olhe para cima, dirigido por Adam Mckay, em cartaz no Netflix. Nestes tempos de amortecimento dos sentidos cívicos, as pessoas se entretêm umas às outras “postando” comentários sobre a superprodução. Trata-se de uma febre mais contagiosa que outras febres, para as quais a sociedade resolveu fechar os olhos de uma vez.

 Na trama, dois cientistas (Leonardo Dicaprio e Jennifer Lawrence) descobrem que um cometa – na verdade um bloco mineral com quase dez quilômetros de extensão – vai colidir com a Terra e destruir a vida no planeta. Eles tentam explicar o cataclismo para a presidente dos Estados Unidos (Merryl Streep), mas a conversa não prospera. A governante não disfarça o enfado e se declara cansada de gente que vai até ela anunciando o fim do mundo. Então, diz que precisa aguardar as eleições para decidir o que fazer..

Os dois astrônomos ficam atônitos, mas não desistem. Desobedecendo as instruções expressas da Casa Branca, resolvem dar uma entrevista a um telejornal que mescla amenidades e atrocidades para capturar a audiência. O resultado é um fiasco vexatório, motivo de chacota nacional.

O cometa vai se aproximando, com sua velocidade estonteante, enquanto o enredo evolui num andamento que mescla tragédia e comédia, romance e catástrofe, sátira e fábula, thriller e distopia. O espectador não desgruda. Talvez falte realismo aqui ou ali, talvez falte verossimilhança, mas o plano geral tem força, magnetismo e poder de convencimento.

 Não olhe para cima é um dos mais ácidos retratos da cultura dos nossos dias. Merece ser visto com atenção redobrada. Mais do que um blockbuster, é um diagnóstico ferino do mal que vem comendo por dentro aquilo que já chamamos de civilização.

O problema do filme não tem nada que ver com cometas, asteroides ou meteoritos – esses corpos celestes servem apenas de pretexto cênico e dramático. O problema central é o enlouquecimento dos métodos pelos quais a sociedade democrática toma suas decisões. É como se as imagens espetaculares que se acendem em toda parte não nos abrissem a visão do que se passa na realidade, mas nos cegassem. É como se estivéssemos todos encerrados numa nova Caverna de Platão, cujas paredes são feitas de telas eletrônicas.

Gravemente enfermos, a sociedade e o Estado perderam a capacidade de escutar a ciência – esta só ganha crédito quando o pesquisador é sexy. O capital, de sua parte, só tem ouvidos para os seus próprios cientistas, aqueles que são pagos para dizer as “verdades científicas” que legitimam o lucro e a acumulação. Se acontece de essas “verdades” entrarem em choque com as condições mínimas de preservação da vida no planeta, ora, a vida que espere, mesmo morrendo.

Não olhe para cima vem para nos falar exatamente disso. A presidente dos EUA é tratada como subalterna pelo seu principal financiador de campanha, o magnata Peter Isherwell (Mark Rylance). Um misto de Tim Cook e Elon Musk, Peter Isherwell é um monopolista da superindústria dedicada à extração dos nossos dados pessoais. Entra quando bem entende em qualquer reunião na Casa Branca. Não tem limites. Dá ordens à chefe de Estado. Não admite nenhuma contestação. Na hora mais crítica, manda abortar uma missão espacial comandada diretamente pelo governo e determina que os “estudos” dos seus cientistas particulares prevaleçam sobre os planos da Nasa.

A política faliu. Só o que resta a quem queira criticar o imobilismo estatal e a ganância capitalista é apelar para os astros do showbusiness, retratados como alienados de rostinho bonito. A política não passa de um escaninho menor dentro da indústria do entretenimento. Fim de linha total.

Para terminar, vale registrar aqui uma autoironia caprichosa: Não olhe para cima critica o entretenimento, mas é também uma mercadoria lucrativa dentro dessa superindústria. Assim, e somente assim, a humanidade ainda consegue rir de si mesma. 

Filmes "psicológicos"

 Filmes “psicológicos”


Amor e Restos Humanos, Denys Arcand
Este filme mostra uma trama de amor, assassinatos e desencontros.
Numa visão pouco otimista das relações humanas, o cineasta canadense Denys Arcand vai fundo em temas como obsessão, solidão e egoísmo.

Betty Blue, Jean-Jacques Beineix
Zorg é um faz-tudo que cuida de vários bangalôs de praia na França. Ele vive uma vida tranquila, trabalhando e escrevendo no seu tempo livre. Um dia, aparece em sua vida, uma jovem tão linda quanto selvagem e imprevisível. Inesperadamente, o jeito irreverente de Betty começa a fugir do controle. Zorg percebe que a mulher que ama está lentamente ficando louca.

Bicho de Sete Cabeças, Laís Bodanzky
Seu Wilson (Othon Bastos) e seu filho Neto (Rodrigo Santoro) possuem um relacionamento difícil, com um vazio entre eles aumentando cada vez mais. Seu Wilson despreza o mundo de Neto e este não suporta a presença do pai. A situação entre os dois atinge seu limite e Neto é enviado para um manicômio, onde terá que suportar as agruras de um sistema que lentamente devora suas presas.


Christiane F, Uli Edel
Um retrato cruel e amargo de uma geração que tem no uso de drogas a sua opção de fuga e sobrevivência.
Na cidade de Berlin nos anos 70, Christiane (Natja Brunckhorst), uma linda adolescente, mora com sua mãe e irmã menor em um típico apartamento da cidade. Ela é fascinada para conhecer a “Sound”, uma nova e moderna discoteca. Apesar de menor de idade ela pede a sua amiga para levá-la ao local. Lá ela conhece Detlev (Thomas Haustein), através de quem se aproxima do terrível mundo das drogas. Indo rapidamente do álcool à maconha e outros entorpecentes, Christiane passo a passo mergulha cada vez mais profundamente no submundo do vício e da prostituição, colocando-se à beira da morte. Um filme de cenas fortes e muito reais, que nos transmite os horrores do mundo do vício.

Cidade dos Sonhos, David Lynch
Um acidente automobilístico na estrada Mulholland Drive, em Los Angeles, dá início a uma complexa trama que envolve diversos personagens. Rita (Laura Harring) escapa da colisão, mas perde a memória e sai do local rastejando para se esconder em um edifício residencial que é administrado por Coco (Ann Miller). É nesse mesmo prédio que vai morar Betty (Naomi Watts), uma aspirante a atriz recém-chegada à cidade que conhece Rita e tenta ajudar a nova amiga a descobrir sua identidade. Em outra parte da cidade o cineasta Adam Kesher (Justin Theroux), após ser espancado pelo amante da esposa, é roubado pelos sinistros irmãos Castigliane.

Cova Rasa, Danny Boyle
Alex (Ewan McGregor), David (Christopher Eccleston) e Juliet (Kerry Fox), que dividem um apartamento, concordam em permitir que Hugo (Keith Allen), um desconhecido, vá morar com eles, mas logo ele aparece morto, vítima de overdose. Entre seus pertences existe uma mala cheia de dinheiro, que faz com que a vida deles seja alterada de forma brutal.

Encaixotando Helena, Jennifer Chambers Lynch
Nick Cavanaugh (Julian Sands), um famoso cirurgião, fica obcecado pela beleza de Helena (Sherilyn Fenn), uma prostituta. Ela o rejeita, mas mesmo assim ele tenta convencê-la que um necessita do outro. No entanto ela tem outros planos, mas acaba sendo vítima de um terrível acidente que a deixa nas mãos do médico, que tem então uma macabra ideia para não mais perdê-la.

Império dos Sentidos, Nagisa Ôshima
O diretor japonês Nagisa Oshima apresenta neste seu polêmico filme um ritual erótico a partir da relação obsessiva entre um homem e uma mulher. Ele está sexualmente ligado à mulher que ama de tal forma que poderá até morrer por ela. Por meio desse relacionamento ensandecido, Oshima procura demolir os preconceitos trazidos pela indústria da pornografia. O seu erotismo não tem limites visuais, mas não é uma exploração meramente pornográfica.

Não Amarás, Krzysztof Kieslowski
Jovem de 19 anos munido de uma luneta começa a observar a vida da sua vizinha (uma mulher madura), que mora defronte ao seu apartamento. Ele fica obcecado por ela e enquanto observa sua vida sexual (na qual o amor não existe), ele esquematiza subterfúgios para se aproximar dela. Com o tempo ele revela seu amor, mas ela o humilha e algo surpreendente acontece nesta relação.

Não Matarás, Krzysztof Kieslowski
Jacek é um jovem desempregado. Certo dia, sem motivo aparente, ele sai pelas ruas de Varsóvia e resolve matar um motorista de táxi. Um advogado criminalista tenta livrar Jacek da pena de morte, e pelo caminho ele esbarra com um Estado totalitário e uma sociedade ainda mais cruel que seu próprio cliente.

O Anjo Exterminador, Luis Buñuel
O Anjo Exterminador é uma das grandes obras-primas do mestre do surrealismo Luis Buñuel (1900-1983), diretor de A Bela da Tarde, O Discreto Charme da Burguesia, entre outros filmes geniais. O ponto de partida do roteiro é dos mais originais da história do cinema. Depois de festa de gala, os ricos convidados, por uma razão inexplicável, não conseguem deixar o local. Conforme os dias, as horas e as semanas se passam, a situação piora. As máscaras e convenções sociais começam a ruir, revelando a falsidade e podridão de cada pessoa. O Anjo Exterminador é um daqueles filmes para toda a vida. Essencial na coleção de qualquer cinéfilo.

O Enigma de Kaspar Hauser, Werner Herzog
Kaspar Hauser é um jovem que foi trancado a vida inteira num cativeiro, desconhecendo toda a existência exterior. Quando ele é solto nas ruas sem motivo aparente, a sociedade se organiza para ajudar Kaspar, que sequer conseguia falar ou andar, mas este logo acaba se tornando uma atração popular.

O Garoto de Bicicleta, Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne
Um garoto de quase 12 anos, Cyril (Thomas Doret), não quer aceitar que perdeu o pai para sempre. Revoltado, agressivo, o menino se agarra à cabeleireira Samantha (Cécile de France), que percebe seu desespero e procura dar a ele o amor de que necessita.

Os Idiotas, Lars von Trier
Um grupo de pessoas junta-se numa grande residência e dedicam-se a procurar o idiota que está dentro de cada um, entrando em “paranóia”, babando-se e passando em público por verdadeiros deficientes mentais, como forma de se libertarem dos seus problemas e de chocarem as instituições burguesas.

Procurando Elly, Asghar Farhadi
Depois de muitos anos vivendo na Alemanha, Ahmad volta ao Irã. Sua amiga Sepideh organiza uma viagem com ele e todos os amigos para passar três dias nas margens do mar Cáspio. Sem avisar o grupo, convida uma estranha, Elly, professora de sua filha em uma creche. No segundo dia, quando tudo parece estar indo bem, um estranho incidente acontece e Elly desaparece. A atmosfera alegre e a harmonia se dissolvem, enquanto os amigos tentam descobrir o motivo do estranho desaparecimento.

Vestígios do Dia, James Ivorya
Stevens (Anthony Hopkins) é o perfeito mordomo inglês. Agora empregado pelo Sr. Lewis (Christopher Reeve), o novo proprietário americano de Darlington Hall, Stevens passou a maior parte de sua vida servindo ao Lorde Darlington (James Fox), o anfitrião de inúmeras conferências internacionais de prestígio nos anos 30. Somente com a declaração da guerra, depois de 1939, é que o envolvimento de Lorde Darlington com os nazistas foi descoberto. Agora, vinte anos depois, Stevens percebe que sua fé cega e dedicação ao dever foram em vão, desperdiçando sua vida pessoal. Por muitos anos manteve um relacionamento intenso com a jovem e atraente governanta, Srta. Kenson (Emma Thompson). Mas seu senso de dever o levou a negar suas emoções… 


Flávio Henrique



Asas do desejo

 Quando a criança era criança

Não sabia que era criança

Tudo lhe parecia ter alma
E todas as almas eram uma

(...) Quando a criança era criança
Era época dessas perguntas:

(...) Um lugar na vida sob o sol não é apenas um sonho?
Aquilo que eu vejo e ouço e cheiro
Não é só a aparência de um mundo diante de um mundo?

O poema do qual os trechos supracitados fazem parte nos é narrado inteiramente na abertura de Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987), e evoca as lembranças de uma época em que a inocência diante do mundo fazia parte da vida. Como sabemos, as crianças são inocentes a quase tudo o que as rodeia, e por isso se aventuram, inconsequentes, no ambiente, a fim de descobrir o funcionamento das coisas. Elas são corajosas ao se introduzir nessa jornada de descobertas, de querer entender os porquês dos porquês, de perguntar tudo sobre tudo, e nunca parecem satisfeitas com as respostas que encontram. O que muitas vezes não notamos é que esse anseio de querer saber sempre mais, de querer desvendar tudo o que nos desperta interesse, prevalece dentro de cada um mesmo depois da infância, só que talvez em menor escala, ou oprimido pelo embaraço ou pelo medo.

E é exatamente sobre isso que se trata Asas do Desejo, um poema  que nos apresenta a eterna busca do homem por aquilo que lhe é desconhecido. Toda a trama se passa na Berlim Ocidental antes da queda do muro, onde nos são apresentadas duas visões sobre o mesmo tema – a dos anjos (em preto e branco) e a dos seres humanos (colorida). É uma época dividida não apenas pelo muro literal, mas também por ideologias, pela guerra fria, saudade, dor, economia, política e insegurança. Um cenário de devastação, marcado por pessoas solitárias e oprimidas, será a base para entendermos a função dos anjos Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) na história, que passam o tempo todo consolando essas pessoas o máximo possível – talvez nem sempre com sucesso.

 Através deles entenderemos todas as frustrações e decepções que, de uma forma ou de outra, dominam os seres humanos em geral. E por trás de todas essas questões está a grande necessidade humana de entender os porquês da vida, a eterna busca por explicações suficientes que justifiquem todo o sofrimento do mundo.  Asas do Desejo é um daqueles filmes raros onde tanto técnica quanto conteúdo são irrepreensíveis, e só poderia ter sido entregue por um diretor sensibilíssimo como Wim Wenders.  Nessa retratação do mundo dominado por barreiras divisórias, o que se sobressai é a mensagem de que nenhuma delas é definitiva, e que mesmo nós podemos lidar com o desconhecido, com o inexplicável, mesmo que talvez nunca cheguemos a desvendá-lo por completo.

Edição de texto: José Aléssio

Despedida em Las Vegas

 Em um de seus grandes contos, o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu afirmou: "Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra." Não se pode dizer com certeza se "especial" é o adjetivo mais adequado para definir as almas de Ben Sanderson e Sera, os protagonistas do filme "Despedida em Las Vegas", mas uma coisa é certa: no meio de todo o exagero de luzes neon e a energia pesada da cidade do jogo, eles se encontraram, se reconheceram e se apaixonaram. Talvez a paixão avassaladora que os uniu tenha sido uma válvula de escape de suas vidas desesperançadas, mas ela existiu. E, sob um depressivo som de blues, nasceu e morreu com a velocidade de uma rodada de blackjack.


Baseado em um romance do escritor americano John O'Brien - que cometeu suicídio logo que o filme começou a ser produzido, o que dá uma ideia do teor baixo-astral da trama - "Despedida em Las Vegas" é o filme mais importante da carreira do cineasta Mike Figgis, também autor do roteiro e da música original. Indicado em 4 importantes categorias do Oscar de 1995, deu a Nicolas Cage quase todos os prêmios possíveis do ano, graças a sua inspirada atuação, além de ter ressuscitado (ainda que por pouco tempo) a carreira da atriz Elisabeth Shue. Organicamente triste, deprê e barra-pesada, é também mais uma prova de que pouco dinheiro não é desculpa para mediocridade: feito a um custo inferior a 4 milhões de dólares, rendeu mais de 30 milhões nos EUA e foi uma das mais premiadas obras do ano. Paradoxalmente, porém, sua maior qualidade é também seu maior problema: o tom de decadência física e moral que perpassa o filme, ainda que fascine a crítica, afasta o público médio. Azar do público médio, que prefere Nicolas Cage bancando o super-herói em tramas risíveis.

Em "Despedida em Las Vegas", o sobrinho de Francis Ford Coppola se entrega de corpo e alma a uma personagem doente, decadente e cuja existência carece de maior razão de ser do que litros e litros de álcool. Abandonado pela mulher - segundo suas palavras, não sabe se a perdeu por beber ou bebe por tê-la perdido - demitido do emprego de roteirista de Hollywood e sem vontade de seguir uma vida que não lhe parece nem um pouco atraente, Ben Sanderson resolve sair de Los Angeles e ir para Las Vegas com o único objetivo de beber até morrer. Lá, ele conhece a bela Sera (Elisabeth Shue), uma prostituta linda e explorada por um cafetão lituano (Julian Sands), que desabafa com um analista nunca mostrado. Maltratada pela vida e extremamente solitária, ela acaba se envolvendo com Ben mesmo sabendo de sua propensão à auto-destruição.

É impressionante a entrega de Nicolas Cage ao papel de Ben. Ator de tipos excêntricos, ele encontra no anti-herói criado por O'Brien o papel de sua vida e o interpreta com uma dedicação comovente, fazendo dele um ser humano real, com qualidades e defeitos. Em nenhum momento ele busca a aprovação ou a compaixão da audiência, nem procura ser artificialmente carismático. Fotografado cruamente por Declan Quinn - que dá uma certa beleza melancólica à decadência de quartos de hotéis baratos e sarjetas - seu caminho em direção à morte anunciada é pontuado por canções de Sting e as luzes que fazem da capital americana do jogo um paraíso artificial - aliás, o cenário escolhido para o capítulo final de sua jornada não poderia ser mais adequado.

E se Cage fez por merecer todos os elogios e prêmios que levou por sua atuação - que lhe dão crédito o bastante para que se tente ignorar 90% dos filmes que ele fez a partir de então - ele encontra em Elisabeth Shue a parceira ideal. Mais lembrada como a namoradinha de Michael J. Fox nas duas últimas aventuras de "De volta para o futuro" e de Tom Cruise em "Cocktail", Shue surpreende com a segurança que imprime em uma personagem difícil e complexa. Linda e sedutora, ela também consegue ser frágil, como mostra a angustiante sequência em que é violentada por clientes adolescentes. Seu olhar desiludido frente à falta de expectativas de sua vida solitária já justifica a indicação ao Oscar - que perdeu para a veterana Susan Sarandon. Sua arrasadora cena de sexo com Ben, nos últimos minutos de projeção é tudo que cineastas metidos a cult gostariam de fazer e não conseguem.

Não dá para recomendar "Despedida em Las Vegas" para qualquer público. É sentido demais, triste demais, tudo demais. Retrata o desespero humano em seu expoente máximo, ainda que silencioso e/ou agressivo. E isso definitivamente não é palatável a todo mundo.

Clênio Silva

Morangos Silvestres

As duas primeiras décadas da segunda metade do século 20 foram particularmente agitadas na formação do cinema moderno. Ao contrário dos anos anteriores, uma era de afirmação de um espetáculo popular, entretenimento à altura do estado do mundo, esses cerca de 20 anos foram de profunda transformação na construção dos filmes, uma vontade às vezes delirante de mudar o cinema. Foram décadas revolucionárias para a estrutura dos filmes, o valor e o sentido deles. Tratava-se de fazer do cinema uma arte realmente nova, à altura do que eram as outras manifestações artísticas depois da virada do século, das invenções da literatura, da pintura ou da música. Os cineastas, sobretudo europeus, assumiram que eram artistas e pensadores, que tinham a obrigação de filmar as dores do mundo, numa linguagem e numa sintaxe que servisse ao que cada filme pretendia. Dois cineastas, tão diferentes um do outro, se destacaram como referência desse momento de transformação. O italiano Federico Fellini e o sueco Ingmar Bergman partiam da mesma constatação do fracasso das relações humanas. Mas enquanto o primeiro, com sua visão latina e cristã da humanidade, falava de uma redenção possível e necessária, o segundo permanecia fiel a sua melancolia nórdica, tratando a infelicidade como condição humana. A imagem mais poderosa que me ocorre do pensamento bergmaniano sobre a humanidade e a vida, encontra-se em Gritos e Sussurros, de 1972. No final desse filme, uma jovem mulher que sofre de um câncer terminal e de dores lancinantes, por alguns poucos segundos vê suas irmãs se divertirem no pátio da casa, o que a ilumina e a deixa feliz. Nesse pequeno momento de trégua de seu sofrimento físico, ela diz que estava se dando conta de que havia vivido toda a sua vida para viver aqueles poucos segundos de felicidade. E isso lhe bastava. Do mesmo Ingmar Bergman, Morangos Silvestres, de 1957, é uma síntese precoce desse pensamento, uma antologia de situações que o exprimem perfeitamente. Um dos primeiros road movie modernos, nele o professor Isak Borg, magistralmente interpretado por Victor Sjöström, decide ir de carro de Estocolmo, onde mora, a Lund, onde vai receber um título honorário pelo seu jubileu. Mal-humorado, pouco receptivo à aproximação de outras pessoas, desinteressado dos problemas delas, Borg, aos 78 anos, vive sozinho aos cuidados de uma empregada igualmente idosa, que se ocupa de tudo que se refere a ele. Em seu quarto, a trabalhar sobre uma escrivaninha bem arrumada, organizada segundo sua meticulosa obsessão pela ordem, ouvimos em off a primeira frase das memórias que Borg começa a escrever: “Nossa relação com as outras pessoas consiste em discutir com elas e criticá-las”. Naquela noite, antes de ganhar a estrada, ele sonha que está numa cidade desconhecida, onde só há ruínas. Numa calçada, cai a seus pés um caixão fúnebre que se abre e o deixa ver o corpo morto em seu interior - ele mesmo, o próprio Isak Borg. A pedido dela, Isak leva em sua viagem para Lund, a nora Marianne que se separou de seu filho por causa da gravidez que ele não deseja. Eles dão carona a três jovens, uma moça e seus dois pretendentes, que vão passar o verão na Itália. Os agora cinco viajantes salvam um casal em crise que, mesmo acidentado, não cessa de brigar, se ofendendo mutuamente. No caminho, Isak ainda visita sua velha mãe fria e distante, uma senhora agressiva que não tem nenhuma lembrança feliz do passado. Ao longo da estrada, Marianne às vezes toma a condução do velho automóvel de Isak, o que permite ao professor dormir um pouco. De cochilo em cochilo, Borg vai sonhando com seu passado de criança, com as férias de verão na casa de campo de uma família desunida, com a bela prima que o esnobou para casar com seu irmão, com a esposa Karin que o traiu sem que ele se importasse com a traição. Todos personagens representados pelos extraordinários atores de Bergman, como Bibi Anderson, Ingrid Thulin, Max Von Sydow, além de Victor Sjöström, treinados no teatro do cineasta para uma outra forma de representação no cinema, com quase nenhum gestual, mais concentrada, congelada. Durante a viagem, o professor Borg sonha prestar exame para a profissão de médico, como se fosse um jovem estudante. Ele aprende então que o primeiro dever de um médico é pedir perdão, uma coisa que sua falta de compaixão nunca o deixou entender, como médico e como homem. Com poucos movimentos e longos planos concentrados nos personagens, fotografia setentrional de Gunnar Fischer e música discreta e comovente de Erik Nordgren, Morangos Silvestres é uma rapsódia melancólica sobre a solidão como impossibilidade de relações humanas que remetam a um momento de felicidade com família, amores, amigos e o mundo. Uma rapsódia em que o presente vazio faz sofrer e lembrar o passado só agrava nosso desentendimento de tudo. E isso dói. Cacá Diegues

Balada de Narayama

Balada de Narayama Narayama-bushi kô (Balada de Narayama), é um filme dirigido por Shohei Imamura e vencedor da palma de Ouro no Festival de Cannes em 1983. Baseado na lenda Ubasuteyama, do Japão antigo, Shohei Imamura nos conta a história sobre o Monte Narayama em cujo sopé, na época de um Japão feudal extremamente pobre, vive uma comunidade de aldeões agricultores. Os velhos, ao completarem 70 anos são levados ao Monte Narayama para ali morrerem. Este filme aborda temas caros à alma, tendo como pano de fundo a luta pela sobrevivência em meio à miséria e as grandes questões que afligem desde sempre a humanidade. Lançados em ambiente hostil os valores morais esmaecem à sombra de necessidades mais fortes e urgentes. Os aldeões miseráveis sublimam a morte do septuagenário revestindo-a com valores morais altruístas. As relações familiares e sociais apresentam-se degradadas e avançam condicionadas unicamente pela necessidade de sobrevivência. A morte e o seu entorno psicológico e físico são o tema central da obra de Shohei Imamura. A psique humana na tentativa de aceitação da mais excruciante dor do homem, cria o benévolo Deus do Monte Narayama em cuja companhia encontram-se, sempre dispostos a receber os vivos, os espíritos dos parentes e amigos ali deixados para morrer. Se por um lado há esse enlevo espiritual experimentado pela sublimidade da ideia do abrigo divino, no outro extremo, o consciente se aliena tentando manter sua sanidade ao se distanciar de humanos sentimentos, tornando a morte fato natural e corriqueiro, portanto, aceitável. A ausência de qualquer tipo de arte e lazer, cria no imaginário popular crendices e fantasias variadas que se misturam à realidade. Entenderemos melhor os fatos e a moral daquela comunidade quando nos apercebemos que nós é que estamos fortemente condicionados, por uma sociedade de paradigmas morais estabelecidos e aceitos como válidos, sem que nunca tenhamos tido consciência de que são valores válidos em condições normais de convivência social onde, em tese, não nos faltam alimento nem teto. Esgarçadas essas condições, Imamura mostra-nos a conseqüente modificação dos paradigmas: deterioradas sob a óptica da moral, porque próximas da nossa animalidade. Aos olhos da natureza, entretanto, é apenas a vida que segue acomodando suas forças biológicas no vácuo das forças sociais. Edição de texto: José Claisson Aléssio

A Felicidade não se compra

     George Bailey é um jovem que sonha em crescer na vida e ajudar o mundo a ser melhor.
 A vida, porém, o trapaceia constantemente. Em certo momento George tenta se matar, e é nesse ponto que o filme aproveita para discutir seus temas de uma maneira diferente.
      Ao invés de termos um aprofundamento claro durante as cenas, elas simplesmente vão acontecendo e você vai absorvendo suas intenções mesmo que inconscientemente. Ao final, você já está emocionado com tudo o que passou na vida de George, e a mágica do filme está na ligação que você faz entre a vida desse personagem fictício com a sua vida real.
      É tudo tão ligado que você tem gosto de lembrar cenas que aconteceram anteriormente, e que pareciam ser desnecessárias para o desenvolvimento da história. Isso acontece quando o anjo desce à Terra e atende ao pedido de George de nunca ter nascido.
      A Felicidade Não Se Compra é copiado até hoje pelos mais diversos filmes que tentam abordar os mesmos temas. Com inocência terna e sincera, A Felicidade Não Se Compra é um belo filme humanista que trata de temas importantes com simplicidade e de maneira tocante sem nunca parecer piegas ou infantil.
      Seus personagens perfeitos não caem na chatice ou na antipatia, e sim funcionam como o perfeito exemplo de como uma boa pessoa pode ser. Em um mundo capitalista como era o de 1946, pós-crise de 1929 e o início da reconstrução após a Segunda Guerra Mundial, devíamos refletir em pleno século XXI sobre os verdadeiros valores da vida. Até hoje o filme é assistido, mas parece que ainda não aprendemos a lição.  

       Rodrigo Cunha

Coringa

 A história de Arthur Fleck é apresentada no filme “Coringa” como um show de humilhação, doença mental, precariedade financeira, isolamento social, desencontros afetivos, enfim, “That’s life”, como canta Frank Sinatra. Convivem, de um lado, a empatia no trato com a mãe, com as crianças, com os jovens que o espancam e, de outro, a fúria contida. Ele não se defende, mas vai chutar o lixo depois.


Não ter sua história contada com a dignidade merecida —ainda que seja de ter sobrevivido ao horror— o mantém à deriva, errático. Seu corpo é desconjuntado, sua corrida é destrambelhada. Há um abismo entre o riso descontrolado e a alegria. Tudo é desencontro em sua vida: no corpo, na história, no amor. Mas Arthur não destoa da paisagem deteriorada na qual sobrevive: invadida por ratos, suja, decadente, intolerante. Ninguém dá a mínima para a assistência social, dirá a assistente social, que o ouve impotente. Ela, ele, todos ao redor estão desamparados.

A promessa de ajuda está projetada na família do magnata que, com o olho na prefeitura, informa que colocará ordem em Gotham City. Mas Thomas Wayne, pai do morcego, se torna o alvo de manifestações maciças a partir do momento em que subestima o descontentamento que o cerca. O tecido social já esgarçou. As pessoas perderam a delicadeza, se queixa Arthur. Ele deixa claro que sua vida vale menos do que sua morte, anunciando que a própria existência psíquica —não apenas suas condições de vida— está em questão. A resposta para seu dilema surge de um gesto inesperado: ele mata três jovens bem-sucedidos.

Arthur Fleck não tinha certeza sobre sua própria existência até matar essas três pessoas. A solução do personagem nos remete para o fundamento da existência do nosso “eu”, que se constitui desde bebê no embate com o outro. Reconhecemo-nos como sujeitos no momento em que reconhecemos o outro. Daí decorre o impulso de se medir com o outro, de ganhar dele, de destruí-lo, de controlá-lo.

As lutas por prestígio —que deflagram guerras mundiais— nada mais são do que a necessidade de reafirmar quem sou eu. Cabo de guerra que só acaba se um dos dois soltar a corda e arranjar algo melhor para fazer. Amor, de preferência. O personagem, que só se sentiu existir a partir do triplo homicídio, cogita desde sempre se matar. Mas entre matar o outro ou se matar, ele escolhe ambos. Mata seu grande ídolo no mesmo instante em que se mata. Arthur já era, agora só tem o Coringa.

Ver o Coringa dando o troco diante de tanta opressão dá uma sensação de prazer inconfesso. O medo de que essa sensação se expressasse por meio de atos violentos fez com que a estreia do filme nos EUA fosse envolta em apreensão, traduzida no aumento do contingente policial. Demonstra-se aí o atual curto-circuito afetivo: ao invés de fazer refletir —vocação maior da arte— sairíamos depois da sessão a matar uns aos outros. Há precedentes. O medo revela que chafurdamos na cultura do “bateu-levou”, do “excitou-estuprou”, do “almejou-roubou”, do “perguntou-respondeu sem pensar”. Como se o reflexo de luta e fuga fosse alçado à categoria de valor social.

Os pais do Coringa são nossa escolha pelo retorno à barbárie, da qual só emergimos a partir de um pacto de solidariedade. Não se trata de ser bom, mas de assumir que entre eu e o outro —qualquer outro— se impõe o reconhecimento do desamparo comum de nossa condição humana. Menção especial ao “amigo” que ofereceu uma arma para Arthur se defender dos bandidos. Péssima ideia.

Vera Iaconelli

A Rosa Púrpura do Cairo

 Woody Allen já declarou que de toda sua obra o filme que mais gosta é A Rosa Púrpura do Cairo.

A história é ambientada no período da Grande Depressão. Cecília, uma garçonete que vive um casamento fracassado, passa horas sonhando com os filmes que assiste e com o glamour dos astros do cinema. A contrastante realidade social e pessoal da protagonista em relação ao mundo mostrado nos filmes serão as colunas centrais de A Rosa Púrpura do Cairo, e o doloroso impasse de escolher entre a realidade e a ficção acaba atingindo em cheio o espectador.

Com essa premissa da escolha entre o maravilhoso impossível e a dura realidade, somos arrastados para um dos finais mais secos e, paradoxalmente, emocionantes dos filmes de Woody Allen nos anos 80. Cecília é a encarnação do indivíduo descontente que não tem forças para levar adiante uma mudança de vida mais radical. O cinema aparece aí como uma arma vital, o lugar onde é possível se entregar ao sonho e acreditar que ele é (ou pode ser, em algum lugar) a realidade de alguém. Ao criticar o comodismo, Woody Allen também louva o poder de “terceirização de problemas” que o cinema tem, mas nos mostra o outro lado da moeda: a ficção não é tão perfeita como nos faz acreditar.

Os conflitos  e as dificuldades que pontuam as relações humanas e amorosas são características que se sobressaem no filme. Em um dado momento a comédia, o drama e a fantasia mesclam-se para dar conta dos muitos níveis de emoções e projeções que o cinema comporta.

 No tocante ao casal protagonista, uma docilidade afetada (“cinematográfica”) muito bela pontua a relação. Através da fotografia escura de Gordon Willis, o cenário desse romance passa por cores tão intensas ou desbotadas quanto o desenrolar do amor entre eles. Quanto mais a burocracia da realidade se impõe, mais desgastado e claramente ridículo se torna o affair entre a protagonista e Tom Baxter, o aventureiro fictício. No entanto, vemos que o mesmo romance fora das telas também não dá em nada. Se nem a ficção nem a realidade podem proporcionar a felicidade, cabe ao indivíduo buscá-la onde mais lhe apraz e é justamente o que faz Cecília quando vai assistir a O Picolino e parece esquecer de todos os seus infortúnios, mergulhando na magia da dança de Ginger Rogers e Fred Astaire, ao som de Cheek to Cheek. Com uma objetividade quase dolorosa, chegamos ao final com um misto de emoções e um prazer inexplicável.

“A Rosa Púrpura do Cairo”, uma antiga lenda, termina por transformar-se num filme-conto fantástico e impossível, onde a tentativa de fuga da realidade fracassa, mas o amor pela vida ou pelos raros momentos felizes que ela proporciona (mesmo que sejam através de uma película 35mm), compensam todo o sofrimento de se viver.

Luiz Santiago

O menino e o vento

 O Menino e o Vento é um filme belíssimo e poético. Iniciando-se num tom realista e dramático a narrativa penetra num clima fantástico/surrealista, quando se deixa dominar pela voz e a visão da personagem principal da história. Com direção de Carlos Hugo Christensen, apoiado no conto de Aníbal Machado, “O Iniciado do Vento”, tem diálogos de Millôr Fernandes.


Carlos Hugo Christensen consegue transmitir muito bem o dia-a-dia de uma cidadezinha brasileira do interior com seus tipos simples, mas que guardam em suas palavras e ações uma forte dose de atraso no arraigamento de certos conceitos comportamentais. Dados fortemente presentes no texto de Aníbal Machado, que no filme se tonificam no encadeamento das sequências denunciando as maneiras pelas quais as pessoas lançam mão para burlar, ou mesmo preservar estes preconceitos, quando objetivam mostrar poder, ou atingir um objetivo pessoal.


Através do julgamento do engenheiro, que envolve e comove toda a cidade, o filme narra a história do seu relacionamento com o menino Zeca da Curva, quando em férias na pequena cidade de Bela Vista, interior de Minas, onde está sendo acusado do assassinato e sumiço do corpo do menino.

Podemos dividir o filme em duas partes quanto à sua narrativa. A primeira seria a de um tom realista/dramático dado à história até antes do depoimento do engenheiro – quando o filme expõe a visão dos habitantes da cidade. A segunda, de um tom totalmente surreal, fantástico, a partir do depoimento do engenheiro, quando ele narra a sua visão do relacionamento que teve com o menino.

O filme se inicia com a chegada à cidade, de trem, do rapaz, o engenheiro José Roberto Nery. Nota-se que muitos curiosos se aproximam e seguem o trem a sua passagem, quando, de repente, alguém arremessa uma pedra que atravessa a vidraça do trem, quebrando-a e quase atingindo o rapaz. Logo em seguida o trem para. Uma multidão se aglomera na estação e nota-se que alguns estão armados com pedaços de pau. Um alto-falante da estação anuncia a chegada do engenheiro e pede calma aos populares para que se possa fazer justiça através de um julgamento legal. O delegado da cidade entra no trem, abrindo caminho entre a multidão, e vai até ao rapaz dizendo que veio protegê-lo. Sabemos então que ele está sendo julgado à revelia pelo assassinato de um menino que conheceu quando de sua estada, em férias, na cidade.

A primeira parte situa o espectador na questão principal que motiva o filme: o julgamento do rapaz por assassinato e o comportamento das demais personagens, habitantes da cidade e ocupantes de cargos ou posições chaves na trama que, em torno do rapaz, contribuirão para a sua acusação ou absolvição.
Enfatizando através dos diálogos e embates os mecanismos de poder e atuação que tem estas pessoas no reverter do quadro de uma situação para um determinado lado dependendo do interesse dos envolvidos.
Por exemplo, o filme primeiro apresenta a reação do povão, da multidão, da plebe: justiça imediata pelas próprias mãos. Ela se arma de pedras e paus, rapazes dançam capoeira, outros observam escondidos o rapaz passar, intimidam soltando fogos na direção dele, e cantam um refrão assustador “Mata! Mata o passarão que vem de fora”.

Em seguida, o delegado o leva escoltado até o hotel de Laura, onde recebe a visita do advogado, que tenta convencê-lo a contar a verdade e diz que por dinheiro trabalhará “direitinho” na sua absolvição. Coage o rapaz revelando que a dona do hotel, Laura, é a principal testemunha, e que foi ela quem induziu que o interesse dele por um menino pobre e analfabeto só poderia ter sido sexual, o que deixa o engenheiro enfurecido e indignado.

A personagem seguinte de embate com o rapaz é Mário de Paiva, o primo rico do menino assassinado, que lhe envia uma carta marcando um encontro, fora do hotel, e dizendo que sabe onde Zeca da Curva está. Este talvez seja o momento mais explicativo da situação em que se encontra o engenheiro. Na conversa Mário se revela homossexual e que tinha “morado” na jogada dele. O que deixa o engenheiro atônito, revelando que a personagem não se sente homossexual. Mário prossegue dizendo que o entende perfeitamente bem, pois também faz parte da minoria e as minorias têm que se defender dos “normais”, da mesma forma como os judeus e os comunistas. Enfatiza que os “normais” jamais irão absolvê-lo. Sugere então que ele terá que ceder. Que poderá mudar seu depoimento, pois ele, Mário, tem que se defender dos “normais”, não pode dar chance nenhuma para que eles saibam ou suspeitem dele. E que, portanto, vai depor contra ele, caso ele não ceda mais uma vez. O engenheiro se indigna e os dois não chegam a um entendimento.

O embate de José Roberto com Laura é mostrado em cenas que demonstram a dubiedade de comportamento desta. Mostra-se carinhosa, atenciosa e amiga quando está com o rapaz e, em seguida, quando desce e conversa com o escrivão muda de tom o acusando de monstro, que deveria ficar enterrado na mesma terra que Zeca. O escrivão, por sua vez, diz que o que importa é o que ele escreve. Uma mudança de palavra para uma outra relativa pode levar à interpretação diferente.

Demonstrado assim o microcosmo do poder da cidadezinha, repleto de nuances reveladoras, o filme prossegue para o julgamento do rapaz.

Neste momento o filme já esculpiu as características da personalidade da personagem principal, o rapaz acusado: ingênuo, puro, não aceita compactuar com tramoias, pois acredita em sua inocência e que vai ser compreendido e absolvido.

O julgamento começa e o advogado relata ao juiz que o réu fará a sua própria defesa e que não pretende, para espanto do juiz, interrogar nenhuma das testemunhas convocadas a depor.
Os depoimentos se iniciam.

A segunda parte do filme muda o tom da narrativa. Ela se torna fantástica e altamente poética quando se iniciam as sequências do depoimento do engenheiro. A partir daí o filme toma a visão fantástica do rapaz. Mergulha neste tom e assume uma narrativa fantástica/surrealista se sobrepondo a uma explicação realista dos fatos, ou seja, de sentido lógico.

O engenheiro inicia o seu depoimento dizendo ter passado 28 dias na cidade e que veio até ela em busca do vento. Pergunta como podem saber se foi ele a última pessoa a ver o menino. Diz que talvez possa explicar tudo contando a história tal como aconteceu. E o que aconteceu não se exprime por documentos. Quem o aponta como anormal sabe que ele não se sente como todos.

Pelo encadeamento da narrativa, organizemos alguns tópicos que podem levar a uma melhor compreensão:

1. O rapaz vai em busca do vento. Sente-se cansado de seu ceticismo e está estafado.
2. Ele encontra um menino que faz o vento soprar. Ele se afasta de seu ceticismo, da sua fuga do sonho. Volta a sonhar.
3. Ele se apaixona pelo vento a ponto de não poder viver mais sem o vento. Começa a confundir o menino com o próprio vento. Fica angustiado quando não venta, pois o menino desaparece. Quando não vê o menino, procura incessantemente o soprar do vento.
4. Ele vai até a colina onde está acontecendo o “ventão”: o menino não está lá e ele fica confuso. O menino chega e os dois ficam em êxtase no vento. O menino fica completamente nu, abraça-o numa despedida e some no vento.
5. Ele vai embora tendo a certeza de que o menino vai voltar. Mas quem volta é ele, acusado da morte do menino que desapareceu.
6. Em seu depoimento ele procura fazer entender a todos que sua história é verdadeira: que o menino virou vento. E é neste momento que – fantasticamente – o vento volta à cidade.

Antônio Moreno

Táxi Driver

 Fiquei com uma lembrança totalmente errada de "Taxi Driver", filme de Martin Scorsese . Pensava que era mais uma daquelas histórias de vingança pessoal, no estilo de Charles Bronson, em que o protagonista é vítima da injustiça ou da indiferença das autoridades, partindo para fazer justiça com as próprias mãos.


O epílogo de "Taxi Driver" até sugere algo assim, mas provavelmente é pura ironia. O filme parece mostrar, antes de tudo, o vazio mental, a burrice, o deserto espiritual e ideológico de toda a sociedade americana.

Até a personagem mais espertinha, que trabalha no comitê de um candidato à Presidência dos Estados Unidos, é de dar pena. Entra na conversa, nitidamente desarticulada e quase assustadora, do motorista de táxi vivido por Robert De Niro.

Ex-combatente do Vietnã, e com sequelas psicológicas que no começo se disfarçam na rotina indiferente de seu trabalho nas ruas de Nova York, De Niro aborda a mocinha como se tivesse a missão de salvá-la de alguma coisa, leva-a para um programa que qualquer pessoa logo vê tratar-se de uma fria.

Ainda assim, Betsy (Cybill Shepherd) é menos burra do que o candidato para quem trabalha, capaz unicamente de dizer que com ele o povo será dono de seus destinos. Que destinos? O triste, na Nova York de Martin Scorsese, é que ninguém sabe o que fazer da própria vida.

Um taxista veterano, a quem Robert De Niro pede conselhos, não consegue ir além de afirmar que seu trabalho é levar pessoas de um lado para outro. No fim, nem sabe exatamente o que Robert De Niro está perguntando, e este tampouco tem condições verbais de se explicar.

Há, em tudo, a noção de que algo precisa ser salvo de alguma coisa. Os Estados Unidos tinham, durante a Guerra Fria, a crença de que valia a pena lutar contra o comunismo. Depois do Vietnã, essa bandeira caiu provisoriamente no vazio.

O taxista se volta contra sua realidade imediata. Há muita sujeira na cidade, diz ele. Pensa em grandes jatos d'água expulsando drogados, prostitutas e vagabundos das ruas onde circula.

Fora isso, não sabe muito o que fazer. Poderia cuidar bem de uma mocinha solitária e elegante ou fuzilar assaltantes de um mercadinho; tirar uma prostituta das ruas ou cometer algum tipo de atentado político.

Qualquer coisa serve. Houve a moda, em meados do século passado, do "rebelde sem causa", no gênero de James Dean ou Marlon Brando. O taxista de Robert De Niro seria o inverso, um tipo de "ordeiro sem causa", querendo restaurar algo que ele não sabe direito o que é.

Antes disso, o "Estrangeiro" de Albert Camus encarnava uma espécie de mal-estar que não chegava a ser rebeldia, e não tinha referência consciente ao desajuste geracional ou a desencaixes sociais. Vivia a falta de sentido.

Mas uma coisa é se ver jogado de repente num mundo sem explicação, experimentar a "Geworfenheit" heideggeriana. Outra é imaginar que o sentido existia, mas que o tiraram de você.

Num caso, você nasceu num quarto vazio; no outro, retiraram os móveis e puxaram o seu tapete.

Natural que sua reação seja destrutiva também. O razoável, claro, seria cuidar de mobiliar novamente o lugar destituído, mas aí seria preciso uma dose de paciência e imaginação que nem sempre possuímos.

A vontade que surge, portanto, é outra. Já que nada sobrou para mim, que se faça a limpeza geral.

Entenderemos as demolições como sinal de progresso. Onde há mato, que se ponha cimento. Onde há camelôs, que se faça o rapa na calçada.

Onde há cracolândia, que se limpe o terreno. Onde houver imigrantes, que se construam muros. Se o muro estiver pichado, que seja pintado de branco.


O problema é que, como no caso do taxista de Scorsese, o desejo de destruição, de assassinato, de devastação tende a sobrepor-se aos procedimentos mais racionais e cuidadosos da lei.

É assim que nos países desenvolvidos, desde Bush, encontrou-se nova missão para dar sentido à vida nacional: o combate ao terrorismo. Curiosamente, os terroristas isolados que atacam suas capitais também vivem o mesmo vazio, e o preenchem com missão igualmente destrutiva.

Marcelo Coelho

O carteiro e o poeta

 O homem humilde, emocionalmente inseguro, que, por hábito, aprendeu a se minimizar, observando ternamente a foto amarelada, enquanto o dia lentamente desperta. Ele tenta estabelecer contato com o pai, um pescador embrutecido pela vida, porém, o velho não escuta suas desajeitadas palavras, mais preocupado com o mecânico saciar de sua fome. Ao conhecer o poeta Pablo Neruda o homem toca brevemente aquele mundo desconhecido, totalmente diferente de sua simples comunidade pesqueira.


Ele tenta conseguir um emprego como carteiro, porém, num toque sutil, a câmera se foca na exigência de uma bicicleta. A sua insegurança é tanta, que, sem pensar duas vezes, ele adentra o local com a bicicleta, como que tentando garantir sua contratação, antes de precisar abrir a boca. Vale notar a postura dele ao avisar ao empregador sua fragilidade intelectual, afirmando que sabe, de forma lenta, ler e escrever, uma mentira que ele é incapaz de disfarçar, quando reage de forma defensiva ao escutar que irá trabalhar apenas para uma pessoa,o poeta Pablo Neruda, já que todos na região são analfabetos. Em sua visão, Neruda é o poeta amado pelas mulheres, aquele ser superior idealizado. A remuneração é pouca, o trabalho é cansativo, devido ao número expressivo de cartas que ele carregará, ele descobre até que o poeta é um comunista, conotação política que não entende, mas nada disso importa para o carteiro, que, com um emprego, passa a existir novamente para seu pai. Ele é aconselhado a trocar o mínimo de palavras possível com o estrangeiro, sendo submisso e prestativo, evitando incomodar.


No primeiro encontro, ele se encanta com o carinho do poeta com sua esposa, gesto que corrobora sua imagem idealizada. A gorjeta era desnecessária, ele já tinha tido satisfeito o necessário, a confirmação de sua crença. Em sua mente, como todos que idealizam, ele cria até a ilusão de uma conversação, já que afirma ao empregador que o poeta fala de forma diferente, quando, na realidade, ele havia apenas agradecido pela entrega das cartas. No segundo encontro, após efetivamente flagrar o beijo do casal, ele toma um pouco de coragem e tenta, de forma desajeitada, estreitar a relação, colocando-se à disposição dele para qualquer trabalho extra. O carteiro precisa aprender aquele truque de mágica, aquela facilidade de encantar tantas mulheres. Com mais uma frase trocada, ele já expande sua ilusão, afirmando que o poeta também é um exímio contador de piadas. Sem cartas, ele vai até o poeta para conseguir uma dedicatória em um livro, uma prova de que ele é seu amigo, um tesouro que ele pretende utilizar com as mulheres, porém, para sua tristeza, seu nome não consta na breve dedicatória.

O carteiro se esforça, tentando compreender o poder sedutor por trás daquelas linhas, letras pequeninas, exercitando timidamente metáforas com o poeta, ainda que não saiba o que significa a palavra, como que mostrando a ele que poderiam ser amigos. Ele não compreende a razão de algo tão simples possuir um nome tão complicado. E, numa cena bonita em simbolismo, pela primeira vez, o enquadramento mostra o poeta se colocando em posição de submissão, sentado, diante do simples carteiro, que, de pé, tenta impressioná-lo com o resultado de seu estudo dedicado. A poesia explicada torna-se banal, ele aprende que a mágica perde o fascínio quando o truque é revelado. Os dois homens, tão diferentes em teoria, acabam se descobrindo, na prática, iguais. Não há mestre e aprendiz, ambos aprendem. O efeito desse encontro, um evento transformador na vida dos dois, uma amizade nascida da improbabilidade, fortalecida com o amor pela palavra escrita. O carteiro deseja contar para o pai sua felicidade, mas, com sua sensibilidade que está sendo apurada, percebe que o velho bronco não irá compreender sua conquista, ou compartilhar seu orgulho, então, triste, ele silencia. A cultura, único elemento que verdadeiramente modifica o homem, já havia começado a libertá-lo daquela realidade simplória.

Octavio Caruso

A Felicidade não se compra

  Ninguém viu nem jamais verá um filme intitulado It’s a Miserable Life. Dele só existe e apenas existirá um cartaz, desenhado e recém-postado nas redes sociais por um internauta anônimo. É uma brincadeira com It’s a Wonderful Life (no Brasil, A Felicidade Não se Compra), o melodrama de Frank Capra há décadas ritualisticamente reprisado na TV e em vários cinemas americanos na noite de Natal.

O cartaz é uma réplica paródica do pôster original do filme de Capra, acrescida deste slogan no rodapé: “Christmas is dead, and we killed it” (O Natal morreu, e nós o matamos). Nós quem? Os filósofos Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre, Arthur Schopenhauer e Slavoj Zizek. São eles os astros do imaginário filme, “produzido e dirigido por Jean Baudrillard”. Algum tempo atrás, a gozação não pareceria tão oportuna quanto agora. Nem é preciso seguir com atenção o noticiário para constatar quão miserável ficou a vida neste planeta.

     Na verdade, quem matou o Natal, vale dizer o espírito natalino, não foi o quarteto de filósofos supracitados, mas a sociedade de consumo, insana, perdulária, egoísta e profundamente anticristã que o pior do capitalismo estimulou. Isso transparece, de forma oblíqua, no filme de Capra. Que, aliás, poderia intitular-se “It’s a Miserable Life” não fosse esse título inadmissível do ponto de vista comercial. E se Capra acreditasse menos na pureza de sentimentos do homem comum. Os humildes podem não herdar a Terra, mas sempre saem como heróis das fábulas do cineasta.

     Se não achasse sua vida miserável, George Bailey, o depressivo protagonista interpretado por James Stewart, não começaria o filme tentando suicidar-se nas águas do rio que banha a bucólica Bedford Falls. Nada dera certo para ele. Sonhava com sacudir a poeira da cidade, dotá-la de pontes, arranha-céus, e viajar aos lugares exóticos que namorava nas páginas da National Geographic, em vez de ficar preso ao escritório da pequena financeira paterna. Perdeu a universidade quando o pai morreu e a chance de ir pra guerra por causa de uma deficiência auditiva, indiretamente provocada por um dos irmãos. O altruísmo e a abnegação, não apenas o acaso, quase arruinaram a vida de Bailey.

     Demovido do suicídio por um avuncular anjo chamado Clarence, Bailey só se convence da importância de sua existência depois de testemunhar, pelo condão de Clarence, como teria sido o mundo sem a sua presença, sem as suas providenciais intervenções na vida da cidade, dos seus habitantes e de seus familiares. 

     Sem ele para enfrentar o usurário Henry S. Potter e sua voracidade pecuniária, Bedford Falls jamais seria ou voltaria a ser o pacato lugarejo em que Bailey nasceu e se criou. Agitada por clubes noturnos, cassinos, salões de bilhar, cinemas, luzes néon e prostituição, teria até outro nome, Pottersville, mantendo, porém, detalhe importante, a mesma estrutura econômica e os mesmos valores de Bedford Falls - com outras e mais graves distorções.

     Bailey, um pequeno banqueiro do bem, que não mede sacrifícios para ajudar a clientela miúda, emprestando-lhe dinheiro a juros baixos e outras benesses, fica chocado com a Pottersville fantasiada pelo anjo. De todo modo, não é mais empolgante a vidinha levada em Bedford Falls. Se Pottersville é ou se transforma num horror urbano, numa caricatura provinciana da “cidade grande”, consumando as concepções de progresso e modernidade do banqueiro do mal (um vilão que idolatra Napoleão e parece saído das páginas de Dickens), Bedford Falls é um tédio só, um lugar sem lazer, modorrento, demasiado sombrio para nos evocar a plácida América de Norman Rockwell.

     Embora seus dois roteiristas tenham desenvolvido o script a partir de uma historinha impressa num cartão natalino, daquelas que outro personagem de Capra, o Gary Cooper de O Galante Mr. Deeds, escrevia para dar vazão a seus dotes literários, A Felicidade Não se Compra é muito mais que um filme natalino. Assim como Adorável Vagabundo (Meet John Doe) é menos uma tragicomédia sobre o frustrado suicídio de um maior abandonado na noite de Natal do que um drama sobre as consequências da Grande Depressão.

     Alguém observou que A Felicidade Não se Compra é o menos religioso (esqueçam o anjo) e o mais humanista dos filmes de Capra. Seus personagens, apesar de acomodados e otimistas, não esperam por uma intervenção divina, preferem agir por conta própria, enfrentando a vilania de Mr. Potter com as armas da solidariedade e da compaixão. Cinéfilos com conhecimento de economia já organizaram mesas-redondas para discutir a propriedade com que Capra expõe o sistema bancário e suas perversidades e os abusos do mercado imobiliário desregulamentado.

     O FBI de Hoover cismou que ali havia uma “mensagem subversiva”. Com a caça às bruxas dando suas primeiras rasantes, um memorando sigiloso de 1947 acusou o filme de “desacreditar os banqueiros”, denúncia que só não prosperou porque um ex-comunista de boas com a falange macarthista depôs a seu favor, salientando que Bailey e seu pai afinal passavam uma imagem positiva dos homens de negócios, não eram sanguessugas de hipotecas.

A Felicidade Não se Compra não precisou da chegada do Natal para ser lembrado pela mídia quando estourou, em 2012, o Caso Abacus. Sediado na Chinatown de Manhattan, o Banco Abacus, instituição familiar criada e dirigida por um imigrante chinês chamado Thomas Sung, notabilizou-se por ajudar a comunidade chinesa com empréstimos e acertos financeiros camaradas. Um alto funcionário do banco fraudou a clientela e quase levou o honesto e generoso Thomas Sung à falência e à prisão. O desenrolar do processo foi tão emocionante quanto o terço final de A Felicidade Não se Compra, e rendeu a Sung o merecido apelido de “o George Bailey de Chinatown”.

Sérgio Augusto


O anjo azul

Vai longe, muito longe, o filme O Anjo Azul (Der Blaue Engel). Lançado em 1930, em Berlim, habita hoje os cemitérios imaginários da indústria cultural. Não deveríamos nos esquecer, contudo, que ele fez à humanidade o favor imenso de tornar famosa a atriz Marlene Dietrich. Com uma cartola na cabeça, mãos na cintura, cabelos curtinhos e um short mais curtinho ainda, ela cantava Falling in Love Again num palco de vaudeville alemão, a casa noturna chamada Anjo Azul. Seu nome era Lola Lola. Sua silhueta prateada se projetava a partir de duas coxas mais inebriantes que a boemia dos anos 20 e mais mortais que a hiperinflação de Weimar. Suas pernas resplandecentes moldaram a presença da mulher no século 20, mas não salvaram ninguém da tragédia. Viriam ainda o nazismo e a Segunda Guerra, que agora também vão longe, mas nem tanto. A história, adaptada na Alemanha do entreguerras, é baseada no livro de Heinrich Mann, Professor Unrat (termo que quer dizer “lixo”), publicado em 1905. Tanto o romance como o filme tinham a intenção mais ou menos explícita de achincalhar a figura impoluta do educador autoritário e conservador, metido a julgar, enquadrar e reprimir a sexualidade alheia. Estamos no auge do expressionismo alemão, um cinema contestador. No papel do professor repressor, Emil Jannings é o expressionismo encorpado e espaçoso. De cavanhaque cinza claro e muitos quilos sobressalentes acolchoados sob o terno cinza escuro, empina o queixo (como um leão marinho cortejando a fêmea) e entra na casa noturna com a carranca de quem está disposto a queimar os pecadores na fogueira. Parece um justiceiro dos costumes. Então, em poucos minutos, o pobre homem sucumbe, indefeso, ao magnetismo erótico da cantora. É o seu fim. Ao se deixar seduzir pela estrela fácil do Anjo Azul, a mesma que encantara seus alunos mais barulhentos, o mestre de inglês e de literatura perde a autoridade, vira objeto de chacota na escola e é demitido sem dó. Na primeira hora, ele até que tenta manter a dignidade. Cavalheiro, pede Lola em casamento. Ela diz sim. Mas, depois, o infeliz vai descambando, de show em show, numa decadência repulsiva. Termina vendendo fotos da esposa seminua para plateias alcoolizadas. O moralismo expressionista: duas leituras A moral da história é tão direta quanto primária: todo moralista conservador é um bobo, um reprimido ridículo. A lição de moral, logo se vê, é ela mesma um pouco moralista. O que temos então é o moralismo expressionista, supostamente revolucionário, contra o moralismo convencional, supostamente reacionário. Tudo acabaria nisso, numa revanche esquemática de uma visão do mundo contra outra, não fosse o vigor estético do filme. Quase um século depois da estreia, a metáfora da obra prima de Josef von Sternberg ainda admite novas leituras, algumas perturbadoras e bem atuais. Falemos de duas possíveis. A primeira pode ser entendida como uma crítica não da moral conservadora, mas da indústria do entretenimento. Sem que essa tenha sido a intenção expressa de seus criadores, O Anjo Azul disseca e antecipa a predação carnívora pela qual essa indústria viria mais tarde a devorar a alma da cultura clássica. Sem camadas de proteção contra o assédio do entretenimento emergente, os cânones da velha cultura se deixaram extasiar, embevecidos, e se converteram em serviçais coadjuvantes do grande teatro de revista em que o planeta iria se converter a partir da segunda metade do século 20. A outra leitura possível vai encabular uns e outros, mas é ainda mais presente – e mais irrefutável, ao menos no caso brasileiro. Por essa leitura, a metáfora de O Anjo Azul expõe uma afecção do espírito típica do intelectual engajado do século 20. Por vaidade, narcisismo ou tibieza, ele sente prazer em acreditar que é desejado com sinceridade por aquela que é o objeto de desejo dos seus alunos (a juventude). Esse prazer o escraviza e ele não consegue resistir à ilusão de ser amado pela estrela que tantos amam. Mas quem é essa estrela, exatamente? Ela não é a sereia mitológica nem uma sacerdotisa da liberação sexual, mas uma nova sereia industrializada, que entoa um canto melodramático e capcioso. Ela é a face sedutora do partido político que aprendeu a cantar na linguagem da indústria do entretenimento. Aos olhos e ouvidos do intelectual seduzido, essa estrela dá razão às veleidades teóricas que ele formulou. O intelectual imagina ouvir na canção sensual o reconhecimento de seu valor de ideólogo e se apaixona por essa sensação. Ele se sente reconhecido, suprido em sua carência, e no sorriso de Lola vislumbra o atalho para o círculo mais íntimo do poder, objeto secreto de sua cobiça inconfessável. Ele se rende, numa dança gozosa que o conduz à maldição: vai vender imagens sem qualidade enaltecendo sua amada para eleitores sem cultura, vai ser o panfleteiro traído, sempre traído, da Lola que finge amá-lo, mas na verdade o despreza. Por fim, quando a rainha da qual se enamorou estiver seminua ou mesmo nua por inteiro nas fotografias de jornal, quando a miséria moral de sua rainha for tornada pública, exposta em contrastes mais que expressionistas para toda gente, o intelectual, traído mas ainda assim fiel, não poderá fazer mais nada que não seja esboçar uma contenteza falsa que mal esconde seu infortúnio. Ele, que um dia acreditou embarcar num novo mundo de luz, música, liberdade e deleite, movido por seu arrebatamento de adolescente deslumbrado, vai descobrir, como o professor Unrat descobriu na ressaca do Anjo Azul, que sua cátedra agora não é o partido, mas a sarjeta. Ele sabe que não valeu a pena. Sabe que se deixou enganar. Sabe que a sereia industrial mentiu. Mas não tem como ousar criticá-la, pois se exilou do próprio pensamento. Ele agora é parte ativa da impostura contra a qual, um dia, diante de uma página de livro, achou que tinha forças para lutar. Eugênio Bucci

A lenda do santo beberrão

   Em A lenda do Santo Beberrão  personagem principal é um mendigo alcoólatra que vaga pelas ruas de Paris e dorme sob as pontes do Sena. Um dia, alguém lhe dá uma soma em dinheiro com a condição de que deve restituir a quantia à igreja de Santa Tereza de Lisieux quando puder, se puder.

  O relato amolda-se à perfeição às ideias sobre o pecado, o arrependimento e a remissão. É, obviamente, um filme cristão, mas não carola. Trata de seguir, de maneira inesperada, um trajeto possível de iluminação.

     O mendigo recebe o dinheiro, mas não como doação. É um empréstimo, cuja garantia é sua honra, talvez sua fé. Mas, enquanto ele o tiver em mãos, poderá recuperar sua dignidade.

      Na história, várias vezes o mendigo tem a quantia e está decidido a restituí-la à santa, mas, de uma maneira ou de outra, algo acontece e ele não consegue fazê-lo. As situações se sucedem à maneira de uma parábola, sem um sentido realista obrigatório, na qual ele será confrontado com seu passado.

     O filme é extremamente belo, mas nunca de uma beleza vazia. A estética, aqui, é colocada a serviço de ideias a serem discutidas, ou melhor, talvez: sentidas, uma vez que fé e iluminação não passam por categorias do discurso racional.

     Desse modo, A Lenda do Santo Beberrão não é filme de proselitismo religioso. Ele trabalha com categorias do espírito, mas não as impõe à maneira de catequese ou de ameaça. Apenas sugere que existe alguma transcendência em qualquer vida, mesmo na vida miserável de um mendigo alcoólatra.

   Luiz Zanin
     

O sétimo selo


 A Idade Média é a época perfeita para a representação dessa alegoria sobre a morte. O teocentrismo dominador e as condições adversas em que viviam as pessoas criaram o retrato ideal para a sensação de que o mundo estava prestes a ter um fim. Recém-chegado de uma missão nas cruzadas, o cavaleiro Antonius Block (Max Von Sydow) se depara com a Morte em pessoa (Benget Ekerot), dizendo-lhe que chegara a sua derradeira hora. “Eu o observo há bastante tempo”, diz a sinistra figura. Sentindo que ainda não encontrou as respostas que buscava, o cavaleiro ganha tempo ao desafiar o ceifador numa partida de xadrez. Talvez por nunca lhe tratarem com essa naturalidade, a Morte aceita o jogo em que disputam a alma de Block. Ao ganhar tempo, entre algumas jogadas adiadas, o cavaleiro tenta retornar ao seu lar, à medida que pelo caminho procura entender a própria morte e o que virá após sua chegada, numa perspectiva teocêntrica, mas também para além dela. A fotografia em preto-e-branco mergulha o espectador numa terra sem qualquer esperança, sentimento ampliado pela religião que prega o desespero.

Paris, Texas

 Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1984, Paris,Texas traz a essência de um “Road Movie”, mesclado com um tom melancólico. Começa abordando a vida de Travis Henderson, que, após ficar mais de quatro anos desaparecido, é achado vagando sem rumo pelo deserto. Seu irmão, Walt Henderson, fica incumbido de ir ao encontro de Travis para trazê-lo de volta a sua casa. Aos poucos Travis vai recuperando sua saúde mental e física e tem a difícil missão de reatar o laço com seu filho pequeno, Hunter, que tinha abandonado após desaparecer. Hunter não fora somente abandonado pelo pai, sua mãe também decidira por deixá-lo aos cuidados de Walt e sua esposa. A trama ganhará sua essência quando Travis decide reencontrar Jane, sua esposa, junto com seu filho.

Gosto de cereja

Gosto de Cereja ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1997. Ele conta a estória de um cidadão de classe-média em seus 50 anos que perambula pelos arredores de Teerã em busca de alguém que possa enterrá-lo depois de se suicidar. “Você vai ao buraco às seis horas da manhã e chama o meu nome duas vezes. Se eu responder você me dá a mão para sair, se não, você joga vinte pás de terra em cima”. O roteiro do filme é construído como uma espécie de parábola, onde cada um dos personagens representa algo maior, uma ideia, uma classe e até uma determinada moral. Um soldado curdo, um seminarista afegão e um taxidermista turco são os três personagens que entram no carro de Badií. Badií é um homem amargurado e quer morrer. Esta é provavelmente a única certeza que temos o filme inteiro. Não sabemos quem ele é, nem os motivos que o levam a optar pelo suicídio. Em uma conversa com o seminarista afegão, ele fala que seu sofrimento acaba causando sofrimento aos outros, e este é o máximo que conseguimos extrair de seus sentimentos. Badií passa quase o filme inteiro nas periferias da cidade, lugar montanhoso e árido, procurando alguém disposto ao serviço. No caminho, eles debatem sobre as questões do suicídio: o seminarista defende que Deus nos dá o corpo, e que se matar é o mesmo que matar a qualquer outra pessoa; entretanto, Badií argumenta que sua infelicidade também afetava os outros, e causar sofrimento também é pecado. O seminarista entende o ponto de vista de Badií, mas rejeita o serviço por ser contra as leis do Corão. Badií acaba encontrando alguém que aceita o serviço. Mesmo assim, ele ainda tenta convencê-lo de diversas maneiras a não se matar. A fotografia da região montanhosa dos arredores da cidade impressiona. A edição também, por conferir um ritmo lento ao filme. Sentimos o tempo passar vagarosamente, como o peso de um eterno último dia. Narrativamente o filme também inova, já que é um road movie onde o personagem roda, roda, e não chega à lugar algum. Se este é ou não é a obra-prima do diretor, cabe a cada um dar sua opinião (opinião que provavelmente resultará da cena final), mas como o próprio Kiarostami disse, a proposta do filme é nos fazer pensar e, ao menos neste aspecto, ele é bem sucedido. 
     Edição de texto: José Claisson Aléssio

Nós que nos amávamos tanto

 O filme Nós que nos amávamos tanto conta a história de três amigos, Antonio, Gianni e Nicola, que lutaram juntos na resistência italiana no fim da segunda guerra.  A trama se desenvolve a partir dos reencontros e desencontros, dos caminhos seguidos por cada personagem.

  Antonio, por causa das suas crenças políticas, sempre ocupa posições subalternas no hospital em que trabalha; Nicola nunca consegue se tornar um intelectual respeitado; Gianni não encontra caminhos para se tornar um advogado capaz de defender aquilo que acredita.

Enquanto Antonio e Nicola mantêm uma dignidade respeitosa consigo mesmos, sem renegar aquilo que acreditavam, Gianni opta por outro caminho, renunciando a seus projetos. Tudo aquilo que acreditava é abandonado, inclusive seu antigo laço de amizade com os dois. Ele deixa também seu grande amor, em suma abandona a si próprio. Esta renúncia acaba cobrando um preço alto demais.

 Cada vez mais ressentido, Gianni se transforma numa figura trágica, isolado, completamente solitário.

Manchester `a beira mar

  Entro na livraria e pasmo: duas mesas, longas, cheias, com títulos que se repetem. A lista é exaustiva mas exaustão é preciso: "Como Viver sem Ansiedade"; "Livre de Ansiedade"; "As 10 Melhores Técnicas para Vencer a Ansiedade" etc., etc.

Depois, os dramas sobem de tom: "Cure os Seus Medos"; "As Regras Essenciais para Viver sem Medo"; "Como Parar o Envelhecimento"; "A Dieta Anti-idade" etc., etc.
Finalmente, e após todas as tormentas, o santo graal: "Pequenos Passos para a Imortalidade"; "Curar para a Imortalidade"; "A Promessa de Imortalidade" etc., etc.

      A moda não começou hoje. Mas só hoje reparei na moda. Duas conclusões. A primeira é que a nossa sociedade já não admite certos traços da condição humana que os nossos antepassados compreendiam e com os quais conviviam do berço até a cova. Ansiedade. Medo. Velhice. Mortalidade.

     A história da literatura, desde Homero, é um catálogo desse rio permanente. Hoje, é uma mancha que estraga a "euforia perpétua", como a chamou Pascal Bruckner, e que humilha os seus sofredores.

     Amigos meus, ansiosos, não sofrem apenas de ansiedade. Eles sofrem com a ansiedade de terem ansiedade. Eles têm medo de terem medo. Eles olham para a velhice e para a morte como os homens primitivos olhavam para trovões e tempestades.