Fiquei com uma lembrança totalmente errada de "Taxi Driver", filme de Martin Scorsese . Pensava que era mais uma daquelas histórias de vingança pessoal, no estilo de Charles Bronson, em que o protagonista é vítima da injustiça ou da indiferença das autoridades, partindo para fazer justiça com as próprias mãos.
O epílogo de "Taxi Driver" até sugere algo assim, mas provavelmente é pura ironia. O filme parece mostrar, antes de tudo, o vazio mental, a burrice, o deserto espiritual e ideológico de toda a sociedade americana.
Até a personagem mais espertinha, que trabalha no comitê de um candidato à Presidência dos Estados Unidos, é de dar pena. Entra na conversa, nitidamente desarticulada e quase assustadora, do motorista de táxi vivido por Robert De Niro.
Ex-combatente do Vietnã, e com sequelas psicológicas que no começo se disfarçam na rotina indiferente de seu trabalho nas ruas de Nova York, De Niro aborda a mocinha como se tivesse a missão de salvá-la de alguma coisa, leva-a para um programa que qualquer pessoa logo vê tratar-se de uma fria.
Ainda assim, Betsy (Cybill Shepherd) é menos burra do que o candidato para quem trabalha, capaz unicamente de dizer que com ele o povo será dono de seus destinos. Que destinos? O triste, na Nova York de Martin Scorsese, é que ninguém sabe o que fazer da própria vida.
Um taxista veterano, a quem Robert De Niro pede conselhos, não consegue ir além de afirmar que seu trabalho é levar pessoas de um lado para outro. No fim, nem sabe exatamente o que Robert De Niro está perguntando, e este tampouco tem condições verbais de se explicar.
Há, em tudo, a noção de que algo precisa ser salvo de alguma coisa. Os Estados Unidos tinham, durante a Guerra Fria, a crença de que valia a pena lutar contra o comunismo. Depois do Vietnã, essa bandeira caiu provisoriamente no vazio.
O taxista se volta contra sua realidade imediata. Há muita sujeira na cidade, diz ele. Pensa em grandes jatos d'água expulsando drogados, prostitutas e vagabundos das ruas onde circula.
Fora isso, não sabe muito o que fazer. Poderia cuidar bem de uma mocinha solitária e elegante ou fuzilar assaltantes de um mercadinho; tirar uma prostituta das ruas ou cometer algum tipo de atentado político.
Qualquer coisa serve. Houve a moda, em meados do século passado, do "rebelde sem causa", no gênero de James Dean ou Marlon Brando. O taxista de Robert De Niro seria o inverso, um tipo de "ordeiro sem causa", querendo restaurar algo que ele não sabe direito o que é.
Antes disso, o "Estrangeiro" de Albert Camus encarnava uma espécie de mal-estar que não chegava a ser rebeldia, e não tinha referência consciente ao desajuste geracional ou a desencaixes sociais. Vivia a falta de sentido.
Mas uma coisa é se ver jogado de repente num mundo sem explicação, experimentar a "Geworfenheit" heideggeriana. Outra é imaginar que o sentido existia, mas que o tiraram de você.
Num caso, você nasceu num quarto vazio; no outro, retiraram os móveis e puxaram o seu tapete.
Natural que sua reação seja destrutiva também. O razoável, claro, seria cuidar de mobiliar novamente o lugar destituído, mas aí seria preciso uma dose de paciência e imaginação que nem sempre possuímos.
A vontade que surge, portanto, é outra. Já que nada sobrou para mim, que se faça a limpeza geral.
Entenderemos as demolições como sinal de progresso. Onde há mato, que se ponha cimento. Onde há camelôs, que se faça o rapa na calçada.
Onde há cracolândia, que se limpe o terreno. Onde houver imigrantes, que se construam muros. Se o muro estiver pichado, que seja pintado de branco.
O problema é que, como no caso do taxista de Scorsese, o desejo de destruição, de assassinato, de devastação tende a sobrepor-se aos procedimentos mais racionais e cuidadosos da lei.
É assim que nos países desenvolvidos, desde Bush, encontrou-se nova missão para dar sentido à vida nacional: o combate ao terrorismo. Curiosamente, os terroristas isolados que atacam suas capitais também vivem o mesmo vazio, e o preenchem com missão igualmente destrutiva.
Marcelo Coelho