Caio Fernando Abreu
Mia Couto
Adriana Falcão
Emanuel Medeiros Vieira
– “Você gostaria de ouvir um verso?”
“Eu não entendo nada de poesia. Só planto flores.”E a jovem morena sorriu para o homem velho que estava diante dela.
Ele estava muito doente. Iria morrer em breve. E conheceu Júlia, a morena, num lugar na periferia da cidade, onde se plantavam e vendiam rosas e outras flores. Não, não queria nada de grandioso ou napoleônico, como dizia, antes da “viagem definitiva”.
Não tinha família, filhos, mulher, não precisava se preocupar com seguros ou pecúnia para descendentes. Aspirava algo raro, até estranho para o comum dos mortais (de hoje): “tornar mais puras as palavras da tribo”, como dizia o poeta.
Seu nome era Jarbas, tinha 70 anos e queria apenas ler versos (não explicá-los; ele sabia que isso era impossível). Queria ler individualmente, nada de grupos ou multidões. Só acreditava nessas relações individuais, “pequenas”, como classificava. Foi algo instantâneo. Não planejado, até mágico: os olhos penetrantes da moça, negros, fundos, que não se desviam do interlocutor, impressionaram Jarbas.
Queria plantar algumas rosas no quintal de seu sobrado, também no subúrbio. Morava sozinho. Naquele momento crepuscular, “definitivo”, de sua vida, tão tardio, sentiu um indefinível tremor quando viu a moça. Algo que nunca tivera na vida, ele que sempre fora tão ponderado e racional. Ele ali, num lugar onde se plantavam e vendiam flores.
E leu para Júlia: “Coração oposto ao mundo, Como a família é verdade!”
Leu e não olhou para ela. Ela tratava de duas rosas. Não havia movimento na floricultura. Era manhã de Quarta-Feira de Cinzas, e o céu estava nublado. A moça nada disse. Apenas sorriu. Foi a vez de ele sorrir. Ela falou: “Não entendi.” – “Eu talvez não tenha entendido também. Mas achei os versos muito belos”.
Ele queria ter falado para ela: “só quero sentir.” Repetiu para si mesmo: “Coração oposto ao mundo, Como a família é verdade!”
Ele escolheu algumas rosas ainda frescas, pareciam cheias do sereno da madrugada, gotas de água escorrendo nas flores vermelhas. Jarbas pegou um caderninho. Leu: – “Às vezes ouço o passar do vento, e só de ouvir o vento passar vale a pena ter nascido.”
Júlia pediu que ele lesse de novo. Jarbas releu. – “Que bonito!”, ela falou, e disse “que bonito!”, com enorme sentimento, algo de dentro com força entranhada. Isso fez o velho se emocionar, este homem que talvez não tivesse mais que meio ano de vida.
Ele pegou um lenço vermelho e enxugou duas lagrimas. Só conseguiu dizer: “Lemos para saber que não estamos sós.”
Júlia percebeu sua emoção, não era moça culta, mas sensível, e sem que ele pedisse tirou da garrafa térmica um chá e ofereceu-lhe numa pequena xícara. O velho cheirou: “É de jasmin”, descobriu e sorriu. A moça também sorriu. – “O senhor é poeta?”, ela perguntou.
– “Não, mas gosto muito de ler e de observar as pessoas.” Ela pediu que ele repetisse as palavras de Fernando Pessoa: “Às vezes ouço o passar do vento, e só de ouvir o vento passar vale a pena ter nascido.” – “É verdade”, ela disse, novamente com um sentimento tão forte que impressionou Jarbas. A manhã de Quarta-Feira de Cinzas estava entranhada no inconsciente coletivo como um tempo de tristeza, de final de festa, de ressacas físicas e morais.
Para ele não: triste era a alegria química, o sexo mercantilizado, a banalização dos sentimentos, a alegria “fingida”. Aquela quarta-feira, que seria tão rotineira, tão igual às outras, adquiria uma voltagem emocional e afetiva tão intensa, um fervor tão raro e forte (como uma prece que fosse fundo, lá dentro da gente, um fervor tão raro e forte, e conseguisse provar que não se está só no mundo).
O acaso: ir comprar flores para o sítio e encontrar aquela moça, sentir essa emoção que chegava a doer no corpo. Um momento como aquele valia uma existência toda. Pensou nos gestos habituais: sair para ir ao médico, dar comida aos gatos, tomar remédios, escutar o ronco dos caminhões, contemplar de longe a cidade grande, e viver essa vida só, cercado de livros e plantas.
O velho pensou na morte de todos os homens e na sua própria morte. Lembrou-se do pensamento de José J. Veiga: “Do lado de lá ficamos expostos aos ventos do desconhecido. Exatamente como do lado de cá.”
– “O senhor mora aonde?”, ela indagou. – “Do outro lado da estrada”. Não tinham muitas palavras. Mas se olhavam com imensa ternura e simpatia. – “Sua família mora aqui também?”, a moça insistiu. – “Não tenho família.” Jarbas falou sem qualquer carga de tristeza ou autopiedade. Até sorriu, de maneira um tanto camuflada, mas perceptível para quem tivesse bom olhar.
Ele relia o Padre Vieira: “Levanta-se o pó com o vento da vida, e muito mais com o vento da fortuna; mas lembre-se o pó que o vento da fortuna não pode durar mais que o vento da vida, e que pode durar muito menos, porque é mais inconstante.” (“Sermão da Quarta-Feira de Cinza”)
Fez uma pausa, respirou: “Sois pó, e em pó vos haveis de converter.” O velho preparou-se para o ritual da despedida. Pagou as rosas, beijou a testa de Júlia. Ela pediu: “Volte sempre”, e o apelo não era algo estatutário, formal: vinha de dentro do seu coração. Ela queria que ele voltasse mesmo.
No final da vida, ele teve a percepção de que o amor não é o contrário da solidão: é a solidão dividida, habitada, iluminada pela solidão do outro. Jarbas leu: “O amor é sempre solidão, não porque toda solidão seja amante, mas porque todo amor é solitário. Ninguém pode amar em nosso lugar, nem como nós. Esse deserto em torno do objeto amado é o próprio amor.”
O velho já estava indo embora. Voltou-se. Queria dar um último beijo na testa da moça. Como seu pai sempre fazia quando ele chegava da escola, e quando ia dormir e pedia a bênção. “Toma a minha bênção, filho”, o pai dizia. E foi embora. Sabia: era a última vez que via a moça. Olharam-se. Ele “sentiu”, enquanto andava pela estrada deserta – aquela estrada cheia de poeira-, que ela estava olhando para ele; pensou como tivesse tido uma descoberta fundamental, seminal: ter tido aquela manhã, ter conhecido aquela moça, havia justificado uma vida inteira.
Como ter escutado o vento.
Edgard Allan Poe
Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."
Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.
Mauro Santayana
Tantos que foram os anos, talvez a memória me engane.
Certas coisas – e que seriam importantes em qualquer relato – me ocorrem como sombras sem contornos. Não sei exatamente em que lugar se encontrava a mais humilde de todas as capelas que conheci, de pau a pique, coberta de palha de buriti (ou de sapê, como posso precisar?), o altar montado em jirau de taquara, com as toscas imagens, que não se pareciam a nenhum santo conhecido, mas todas coroadas com seu halo feito de cipó amarelo, bem fininho e trançado com muito zelo.
Os santos eram esculpidos em barro cru, mas – ao que me pareceu – cobertos de clara de ovo, para que não quebrassem. Sobre o altar, pregada na parede também de barro, em folha dupla de papel almaço, a saudação do anjo ao nascimento de Cristo: Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. O chão, de terra batida, ainda mostrava os rastros da vassoura, de ramos de alecrim-do-campo, encostada a um canto.
Era o sinal de que alguém cuidava bem da capelinha.
Não havia como sentar-me: era uma capela feita para a genuflexão. Dobrei os joelhos e rezei àqueles santos e santas desconhecidos: era um homem, uma mulher e seu filho. Pensei na Santíssima Trindade, mas talvez não fosse.
Podiam ser um santo qualquer, que não José, o Carpinteiro, uma santa qualquer, e não a Virgem Maria. E o menino, disso estou certo, não tinha nada a ver com Jesus. Era um menino já parrudinho, não o da gruta. Tinha os olhos esbugalhados, talvez de espanto, desproporcionais ao rosto. Assim mesmo, orei.
Disso andava precisado, como sempre andei.
Antônio Carlos Viana
Quando tia Darci voltou a ouvir vozes, eu não era mais tão criança. Ninguém lhe deu atenção. Diziam que era meio pancada só porque era solteirona. Minha mãe dizia que era falta de homem, que, se ela tivesse um ao lado, ia ver coisas bem mais interessantes, não ia ficar prestando atenção em vozes do outro mundo. Mas eu sentia verdade na voz de tia Darci. Quando ela disse que uma nova prova ia começar para a família, todo mundo ficou nervoso, mas preferiu disfarçar, dizendo que espíritos não voltam, se é que há espíritos. Como tia Darci viu que só eu deixava transparecer confiança em suas palavras, se pegou comigo e me chamava sempre que recebia um recado do além. Eu perguntava como era a voz. Ela dizia que não chegava a ser uma voz assim como quando a gente fala. Era uma coisa que se espalhava dentro dela, que ficava azucrinando e só lhe dava descanso quando ela parava tudo 0 que estivesse fazendo para escutar. Ela vivia fazendo jejuns e tinha certas comidas que não comia nem amarrada, dizia que lhe quebravam as forças. Seu maior sonho era ter as chagas de Cristo nas mãos. Ela lera isso numa revista, um padre italiano sangrava assim e fazia milagres.
Um dia perguntei a ela o que a voz falava de mim. Ela disse para eu não ter medo do futuro, mas que tomasse cuidado com os inimigos que se fazem de amigos e a gente nem desconfia. Que inimigos? Por enquanto só o menino vizinho, que vivia pegando no meu pé porque no pião eu era imbatível. "Começa por aí", ela falou. Passei a olhar o tal vizinho com olho torto. Ele vinha me chamar para brincar e eu dizia que não, tinha muita tarefa da escola pra fazer, precisava molhar as plantas do quintal, que se morresse uma roseira a culpa ia ser minha... É chato a gente mentir. Ele não se conformava e marcava então pra depois que eu terminasse minhas tarefas. Na verdade, eu não queria mais brincar com ele. Depois que tia Darci adivinhou que alguém ia se queimar com uma panela de água quente e meu irmão se queimou todo no peito, o que ela dizia não podia ser desprezado.
Leonardo, o tal vizinho, veio brincar de pião num fim de tarde que quase terminou no hospital. Ele jogou o pião de um jeito que o bico caiu em cima do meu pé e fez um furo feio. Tia Darci falou que eu precisava levar a sério o que ela dizia, não fosse como os outros, que viviam zombando dela. E viviam mesmo. No almoço, todos à mesa, meu pai era o primeiro a desacatá-la de forma grosseira: "Que é que esse pato está lhe dizendo agora, Darci?". A gente via que ele estava indo além dos limites. "A mim está dizendo que está muito gostoso", respondia ele mesmo, com aquela risada sem controle, de fazer saltar carocinho de arroz por cima da gente. Tia Darci olhava para ele e eu via nos olhos dela um misto de raiva e compaixão. Havia na gaveta do armário dela um livro de são Cipriano, o Livro negro, que minha mãe dizia só servir para fazer mal aos outros. Eu era doido para folheá-lo, mas tia Darci não deixava. Dizia que ali havia remédio para tudo, até para a pessoa não ficar careca. Eu quis saber como era, para aplicar a fórmula, se eu precisasse um dia, mas ela nunca me deixou nem pegar nele.
De manhã, todos nós ficávamos esperando tia Darci sair do quarto pra perguntar o que ela havia escutado durante a noite. Não era sempre que isso acontecia. Minha mãe só queria 05 números do bicho, era viciada. Tia Darci dizia que os espíritos não gostam de jogo e que, se minha mãe quisesse ganhar, fosse escutar as vozes dela, porque todos temos vozes que zelam por nós, é só querer escutá-las. Como éramos crianças, ela dizia só coisas boas: eu iria ser escritor, Deo vai ser engenheiro, Caco vai ser um pintor famoso, Lia vai ser doutora, Nenzinho vai ser advogado.
Num dia de muita chuva, todo mundo dentro de casa, tia Darci levantou a mão direita pedindo silêncio. Olhei pra ver se tinha alguma chaga. Não tinha. Nessas horas, ela se empertigava toda, parecia mais alta do que era, era a mais alta da família, muito magra, o rosto encovado, talvez de tanto sofrer com a descrença dos outros. Tinha os cabelos curtinhos, ela mesma os cortava com uma gilete, era uma pessoa toda sem vaidade. De longe, se estivesse de calça comprida, qualquer um pensava que era um rapazinho. Acho que o nome moldou seu corpo, porque Darci tanto podia ser nome de homem ou de mulher. Só quando falava, aparecia a sua feminilidade, uma voz doce e bonita, que puxava os cânticos nas novenas de junho.
Ficamos então em silêncio, e tia Darci foi se empertigando toda, foi ficando distante de todos nós, seus olhos deixavam transparecer que não era coisa boa 0 que ela estava ouvindo. O silêncio era total na sala e dali a pouco ela veio voltando lentamente, sacudiu a cabeça e disse: "Coisas graves vão acontecer nesta casa". Minha mãe disse logo: "Por que você não pega só as boas?". "Não depende de mim", ela respondeu, e saiu da sala. Depois de ouvir as tais vozes, tinha de tomar um banho de sal grosso para se livrar das energias negativas que ficavam em seu corpo. Se não tomasse, caía numa prostração feia que só o doutor conseguia curar com muita conversa no quarto escuro e bolinhas de homeopatia. Ela dizia que só se dava bem com elas, os outros remédios a fariam perder a capacidade de ouvir. Foi assim com um antibiótico que tomou para um ferimento na perna. Passou meses sem ouvir vozes. Da família, era a mais estudada, fora até o Normal, mas não se formou, pois começou a ouvir as tais vozes ainda no primeiro ano e isso atrapalhou tudo. Espalharam sua fama de feiticeira e ela foi ficando malvista por todos, até que desistiu da escola. Podia até ter vivido da sua mediunidade, mas nunca quis, dizia que não se cobrava pelo que era dado de graça por Deus. Por Deus?, retrucava minha mãe, sempre incrédula.
Naquele dia, uma das coisas que tia Darci falou quando voltou do banho foi que meu pai deveria tomar cuidado. Devia adiar aquela viagem que ele ia fazer em outubro. Se ele fosse, não voltaria. Falou direto, acho que de tanta raiva que tinha dele, já que os dois viviam se pegando por qualquer tolice. E que a voz tinha dito que dele só restaria a malinha de ferramentas. Melhor não viajar. Pela primeira vez minha mãe deu ouvidos a tia Darci e fez tudo pra meu pai deixar aquela viagem pra depois, quando os espíritos soprassem tempo bom. Ele disse que, se fosse esperar pelos espíritos, a gente morria de fome. Precisava ir ao Rio resolver problemas de um emprego que tinha largado, trabalhar mais um pouco pra juntar dinheiro e depois voltava de vez pra morar com a gente e abrir uma torrefação de café. O olhar de tia Darci em cima dele parecia de pena.
A gente estava almoçando quando o assunto voltou à baila. Meu pai, com seu jeito ríspido, falou: "Agora mesmo é que eu vou. Quero ver se essas vozes estão falando a verdade". Achei que ele não devia ter falado assim, tia Darci já havia acertado comigo no caso de Leonardo. A malinha de ferramentas no canto da sala me pareceu sinistra. Nada fez meu pai desistir da viagem.
Era outubro, bem no começo, ele nem se despediu da gente, só vi a porta bater e minha mãe ficar chorando na sala. Ela o amava muito, mesmo sendo ele um pobretão, como ela mesma dizia. Passou a primeira semana e nenhuma notícia dele. Passou a segunda, e a mesma coisa. A família começou a se inquietar. Como saber o que tinha acontecido? Tia Darci, mais calada do que nunca.
Como ela havia previsto, meu pai nunca mais voltou. Só errou quanto à maleta de ferramentas, que se perdeu para sempre. Assim que soube da notícia, tia Darci sumiu de casa, e só muitos anos depois é que descobrimos seu paradeiro, quando já estávamos crescidos. Ela estava morando num asilo, numa cidade do interior. Fui visitá-la. Parecia bem tratada, de banho tomado. Engordara muito. Ali sentada na varanda, parecia um velho índio do Oeste, com uma trança branca descendo pelo ombro esquerdo. Não a reconheci. A imagem que me ficara era a de uma mulher seca, de cabelo cortado bem curtinho. Não deu a menor bola para. mim, apenas sorriu quando falei quem eu era. Minha voz quase não saía para dizer que nossa vida tinha sido muito difícil, que agora estava tudo bem. Que minha mãe tinha acertado na loteria e que todo mundo tinha se formado, mas em carreiras diferentes das que ela predissera. Num determinado momento, pensei que ela ia falar, apenas movimentou os lábios sem conseguir articular nada. Só fez esboçar um sorriso. Fiquei pensando se alguma voz lhe teria dito que ela acabaria assim, em silêncio total. Me despedi e, pela primeira vez, uma voz me disse que eu nunca mais a veria. Morreu meses depois. Fui lá pegar seus pertences, entre eles o Livro negro de são Cipriano. Pregada numa das páginas, uma foto de meu pai de paletó branco, ainda bem jovem e bonito, e em outra a de minha mãe, com os olhos furados.
* (Tia Darci ouve vozes)
Mário Corso
Minha amiga foi taxativa: - Te imploro, não vai nesta cartomante.
Mas, rebati, você não disse que ela conta a verdade? - Sim, mas é uma verdade que não é bom saber.
Carla não era a única a me desencorajar. A irmã dela nem conseguia falar da consulta. Um mutismo desanimado lhe invadia o semblante e dali não escapava palavra. Só admitia que algo especial ocorreu.
Era uma cartomante diferente. No boato, apenas uma carta seria aberta e desta única viria a revelação sobre nossa vida. Soava disparatado e, talvez por isso, atraente. Carla me fez jurar pela saúde da minha mãe que ficaria longe da bruxa. O juramento foi fajuto. Desculpa, mãe! A curiosidade me corroeu e fui procurar a misteriosa Dona Cora.
O endereço era no fim da Protásio. Um lugar tão distante, que tive a impressão de ter saído de Porto Alegre. Encontrei o número num prédio residencial que parecia não ter sido acabado. O apartamento minúsculo era ainda mais precário. Pouca iluminação, paredes nuas e móveis velhos arrematavam o ar de desleixo do conjunto.
Esperava uma cigana de olhos verdes magnéticos e cabelos negros escorridos. Mas Dona Cora era uma senhora simples. Sabe essas tantas pessoas pelas quais passamos na rua e nem notamos? Trajava um vestido desbotado onde no passado houve um azul.
Sentou-se na minha frente e pediu que escolhesse uma carta do baralho aberto em leque em cima da mesa branca de plástico.
Retirei e virei. Veio um seis de paus.
- Você é um seis de paus.
Sim, e daí? Perguntei.
- É só isso, você é um seis de paus. Este é seu tamanho e seu lugar no mundo. Antes que a noite chegue, vai entender.
Durante essa fala, pegou nas minhas duas mãos e me olhou com força. Levei um choque. Uma parte de mim sentia-se idiota ouvindo besteiras de uma charlatã. Outra tinha medo e espanto. Paguei e saí como quem foge.
No ônibus de volta, uma sensação ruim agarrava meu peito. A frase dita soava absurda. Por que não reagi? Por que aceitei pagar? Como assim ser como uma carta de baralho? Aquela vaca é que é um seis de paus! Não eu.
Enquanto cruzava Petrópolis, uma ideia foi se formando. Veio a lembrança da minha mãe, uma costureira de pequenas causas que sofre por não conseguir ter seu próprio negócio. Depois, recordei meu pai, que levou a vida fazendo biscates. Morreu pobre até de sonhos.
Com tristeza, percebia um sentido diferente em tudo. Vislumbrei a lógica oculta no baralho. Há uma hierarquia de números e dos naipes, e um simbolismo em cada carta. A pluralidade da sociedade está nelas.
O baralho fascina por não ser uma invenção arbitrária, é um reflexo da lógica da sociedade. Os naipes são os arquétipos essenciais da condição humana. Os números revelam a intensidade de nosso talento, a força com que nos agarramos ao destino.
A cartomante me fez entender onde me encaixo no rio da existência. Meu lugar por agora é insignificante e as marcas que deixarei no mundo serão mínimas. Sou um soldado raso sem chance de glória. Um peão de um imenso tabuleiro onde quem decide o jogo são os outros.
Carla tinha razão em tentar me proteger. Não há nada mais duro do que saber sem ilusões o quanto valemos. Espero, ao menos, que essa sabedoria me ajude a trocar de carta.
E você, caro leitor: qual a sua carta?
Mia Couto
Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança. A casa, aquela casa nossa, era morada mais da noite que do dia. Estranho, dirão. Noite e dia não são metades, folha e verso? Como podiam o claro e o escuro repartir-se em desigual? Explico. Bastava que a voz de minha mãe em canto se escutasse para que, no mais lúcido meio-dia, se fechasse a noite. Lá fora, a chuva sonhava, tamborileira. E nós éramos meninos para sempre.
Certa vez, porém, de nossa mãe escutamos o pranto. Era um choro delgadinho, um fio de água, um chilrear de morcego. Mão em mão, ficamos à porta do quarto dela. Nossos olhos boquiabertos. Ela só suspirou:
– Vosso pai já não é meu.
Apontou o armário e pediu que o abríssemos. A nossos olhos, bem para além do espanto, se revelaram os vestidos envelhecidos que meu pai há muito lhe ofertara. Bastou, porém, a brisa da porta se abrindo para que os vestidos se desfizessem em pó e, como cinzas, se enevoassem pelo chão. Apenas os cabides balançavam, esqueletos sem corpo.
– E agora – disse a mãe -, olhem para estas cartas.
Eram apaixonados bilhetes, antigos, que minha mãe conservava numa caixa. Mas agora os papéis estavam brancos, toda a tinta se desbotara.
– Ele foi. Tudo foi.
Desde então, a mãe se recusou a deitar no leito. Dormia no chão. A ver se o rio do tempo a levava, numa dessas invisíveis enxurradas. Assim dizia, queixosa. Em poucos dias, se aparentou às sombras, desleixando todo seu volume.
– Quero perder todas as forças. Assim não tenho mais esperas.
– Durma na cama, mãe.
– Não quero. Que a cama é engolidora de saudade.
E ela queria guardar aquela saudade. Como se aquela ausência fosse o único troféu de sua vida.
Não tinham passado nem semanas desde que meu pai se volatilizara quando, numa certa noite, não me desceu o sono. Eu estava pressentimental, incapaz de me guardar no leito. Fui ao quarto dos meus pais. Minha mãe lá estava, envolta no lençol até à cabeça. Acordei-a. O seu rosto assomou à penumbra doce que pairava. Estava sorridente.
– Não faça barulho, meu filho. Não acorde seu pai.
– Meu pai?
– Seu pai esta aqui, muito comigo.
Levantou-se com cuidado de não desalinhar o lençol. Como se ocultasse algo debaixo do pano. Foi à cozinha e serviu-se de água. Sentei-me com ela, na mesa onde se acumulavam as panelas do jantar.
– Como eu o chamei, quer saber?
Tinha sido o seu cantar. Que eu não tinha notado, porque o fizera em surdina. Mas ela cantara, sem parar, desde que ele saíra. E agora, olhando o chão da cozinha, ela dizia:
– Talvez uma minha voz seja um pano; sim, um pano que limpa o tempo.
No dia seguinte, a mãe cumpria a vontade de domingo, comparecida na igreja, seu magro joelho cumprimentando a terra. Sabendo que ela iria demorar eu voltei ao seu quarto e ali me deixei por um instante. A porta do armário escancarada deixava entrever as entranhas da sombra. Me aproximei. A surpresa me abalou: de novo se enfunavam os vestidos, cheios de formas e cores. De imediato, me virei a espreitar a caixa onde se guardavam as lembranças de namoro de meus pais. A tinta regressara ao papel, as cartas de meu velho pai se haviam recomposto? Mas não abri. Tive medo. Porque eu, secretamente, sabia a resposta.
Saí no bico do pé, quando senti minha mãe entrando. E me esgueirei pelo quintal, deitando passo na estrada de areia. Ali me retive a contemplar a casa como que irrealizada em pintura. Entendi que por muita que fosse a estrada eu nunca ficaria longe daquele lugar. Nesse instante, escutei o canto doce de minha mãe. Foi quando eu vi a casa esmorecer, engolida por um rio que tudo inundava.
Katherine Mansfield
Ele era, realmente, uma pessoa inacreditável. Tímido demais. Com absolutamente nada para dizer. A O estranho era que à primeira vista ele parecia interessantíssimo. Todo mundo concordava nisso. E, como se isso não fosse bastante, havia seu jeito de corar… Todas as vezes que o garçom se aproximava, ficava escarlate - parecia que tinha acabado de sair da cadeia, e que o garçom sabia.
Seu nome é Ian French. Pintor. Muitíssimo inteligente, dizem. Alguma mulher começou por dedicar-lhe um terno carinho. Mas quando uma vez ela foi ao seu estúdio tocou, tocou, e ninguém atendeu, embora ela jurasse ter ouvido a respiração de alguém dentro da sala. Um caso sem esperança." Uma outra decidiu que ele precisava se apaixonar. Ela o atraiu para o seu lado, chamou-o de "menino", inclinou-se sobre ele fazendo-o sentir o perfume de seus cabelos, pegou-lhe o braço, disse-lhe como a vida podia ser maravilhosa "se apenas tivéssemos coragem"; e foi ao seu estúdio uma noite, e tocou e tocou… Não havia esperança.
"O que o coitado do moço precisa é de um verdadeiro estímulo", disse uma terceira. Então, lá se foram eles para cafés, cabarés, pequenas danceterias, lugares onde se bebia alguma coisa que tinha gosto de suco de damasco, mas que custava vinte e sete shillings a garrafa e era denominado champanhe; outros lugares, emocionantes demais, onde a gente se sentava na mais terrível escuridão, e onde sempre tinham atirado em alguém na noite anterior. Mas ele não tinha a menor reação.
Ricardo Soares
Não posso esclarecer ao prezado leitor se você morreu ou me deixou o que no fundo é a mesma coisa. Deixo por conta da imaginação de quem lê.
O que é fato, o que é liquido e certo é que você não está mais por aqui depois de tantos anos e por conta disso eu dei de falar com os cabides e rosnar para os rodapés pegando ojeriza dos gatos que gostavam mais de você do que de mim.
Você não quis levar tantas boas recordações mas só as más lembranças e todas as suas bugigangas que entulhavam a minha vida e só agora vejo o quanto eu gostava disso.
Ficou o vazio, o pétreo vazio de azulejos de hospital, de comidas que não mais farei, de chás que você não vai mais me levar até a cama até porque teriam que ser muitos porque agora passo grande parte do dia deitado.
Doença ou depressão já não sei . Afinal não é tudo o mesmo?
Se escrevo essas mal cansadas linhas é porque sei tardiamente agora que como na letra da bossa nova “é impossível ser feliz sozinho”.
O resto é barulho de um mar remoto, de um dia silencioso, de pássaros que ignoram que eu me aposentei precocemente sem querer e que cabeça vazia é ferramenta do diabo.
Assim vou.
Já muitas primaveras vivi nessa vida. Lido muito mal com a tristeza, também lido mal com a indelicadeza e com a privação de qualquer sentido.
Assim é que não vejo nenhum sentido na sua ausência.
Ela me dói, me dilacera, me faz ter uma dó danada de mim porque mesmo não tendo nascido junto de ti estava a ti umbilicalmente ligado.
Mauro Santayana
Nunca voltamos. Os lugares mudam todos os dias, como também mudamos. As lágrimas cavam rugas em nosso rosto e as chuvas abrem feridas na paisagem de nossa infância; assim como nós, as casas e as ruas, as árvores e os jardins, estão sempre mudando, porque o tempo as conduz nesse êxodo rumo ao nada, mais próximo de nós, menos próximo das pedras e riachos, das montanhas e rios, que duram muito mais do que a efêmera carne que nos veste a alma.
Mas se não voltamos ao mesmo lugar, posto que o lugar é sempre outro, voltamos na geografia, em busca do tempo perdido, se posso plagiar Proust. Foi assim que retornei em vão ao velho Pouso do Marimbondo, em que descansavam, no século 18, os tropeiros e seus burros. Como o comércio crescesse e se amiudassem as viagens, uma mulher da vida decidiu levantar ali seu rancho, e servir cachaça e consolo aos passantes. No princípio era só isso. Os próprios tropeiros armavam trempes e redes, cozinhavam feijão com charque, roncavam feito bichos, enquanto os burros zurravam. Era de sua promessa a Nossa Senhora que, tirante os deveres de seu ofício, dormiria só, e, só, dormia.Com o tempo, surgiram outras raparigas, mais jovens, que ergueram também os seus barracos. De vez em quando uma se emprenhava e paria, como ela mesma, mãe de quatro ou cinco, e era difícil identificar os pais, sempre esquivos, posto que todos de mulher fixa longe dali, e dinheiro miúdo. E o Pouso do Marimbondo se transformou em patrimônio, com capela devotada a Santa Maria Madalena, como era de seu direito, e depois em distrito, na balbúrdia daquela promiscuidade.
Ali, em cidade crescida, passei a infância, descendente longínquo daquela pioneira, sem saber de que linhagem procedia; se dos morenos abugrados, se dos portugueses temperados de mestiçagem. Quando fiquei rapazola, meu pai, ficando viúvo, demandou outros destinos, e de lá saí, montando jumentinha castanha, isso faz muito mais de meio século. Voltei, pensando em comprar fazenda, faz alguns meses. Na prefeitura me deram um folheto sobre o município: “Pouso do Marimbondo foi criado por bandeirantes que combateram os bugres, e aqui construíram um forte. Chamou-se Pouso do Marimbondo porque o chefe da bandeira, Manuel Lopes Salgado, nobre português de Trás-os-Montes, que estava acompanhado de sua mulher, foi picado por um marimbondo-cavalo, quando levantou a sua primeira casa de pedra, cujas ruínas podem ser vistas à margem do riacho, na praça central”. Vi o que ficara do tugúrio de Chiquinha Dengosa, a esquecida e solidária matriarca da cidade hipócrita e ingrata. E parti de novo, para nunca mais voltar.
Ignácio de Loyola Brandão
Gulliver
Náufrago, Gulliver caiu numa terra de anões belicosos, os liliputianos, que o tornaram prisioneiro e que mantinham uma guerra de 800 anos com anões de outra região. Devido a seu tamanho, foi obrigado a lutar por um dos lados, e vendo tantas barbaridades, perguntou ao rei, a quem era obrigado a servir, o motivo de luta tão feroz e selvagem.
O rei explicou que o povo dele, ao tomar o café da manhã, cortava os ovos pela parte de cima, a mais pontiaguda, e os inimigos cortavam os ovos pela parte de baixo, a mais arredondada. Gulliver ouviu, pensou, pensou outra vez e perguntou ao rei se não havia uma lei, um decreto, uma legislação que determinasse a questão, estabelecendo de uma vez para sempre a maneira de todos cortarem os ovos.
O rei ficou espantado e respondeu: “Somos civilizados. Evidente que há uma lei que regulamenta o assunto”. Gulliver quis saber o que a tal lei dizia e o rei, em tom solene, majestático, informou:
“O primeiro artigo de nossa Constituição diz claramente que os ovos devem ser cortados pelo lado certo”.
Paulo Nogueira
O mundo seria muito melhor se todos lessem Machado na escola ao invés de passar o olho no resumo que acharam na internet na manhã do dia da prova. Cometi a heresia de cortar alguns trechos para que este texto fosse publicável no blog, dado o seu tamanho.
Se você acha que tenho o objetivo de, sorrateiramente, fazer alguma alegoria política para o momento atual, esqueça. Você pode não saber, mas o mundo é muito maior do que o pobre dualismo para o qual muitos de nós querem empurrá-lo.Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.
Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária (…)
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo.
A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas.
Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros. A descoberta assombrou o Diabo.(…)
Continua em … Machado de Assis !