O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se
não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. Houve no mundo
tantas pestes quanto guerras. E contudo, as pestes, como as guerras, encontram
sempre as pessoas desprevenidas. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem:
“Não vai durar muito, seria idiota! E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que
não a impede de durar. A tolice insiste sempre.
Oran é uma cidade aparentemente
moderna. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se
convencionou chamar ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois. Também
isso não é original. Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo e de
reflexão, somos obrigados a amar sem saber.
Foi mais ou menos nessa época que os
nossos concidadãos começaram a se inquietar, pois as fábricas e os depósitos
vomitaram centenas de cadáveres de ratos. Em alguns casos, foi necessário acabar
de matar os bichos, pois sua agonia era demasiado longa. Mas desde os bairros,
exteriores até o centro da cidade, por toda parte onde os nossos concidadãos se
reuniam, os ratos esperavam em montes, nas lixeiras ou junto às sarjetas, em
longas filas.
A imprensa da tarde ocupou-se do caso a partir desse dia e
perguntou se a municipalidade se propunha ou não a agir e que medidas de
urgência tencionava adotar para proteger os seus munícipes dessa repugnante
invasão. A municipalidade nada se tinha proposto e nada previra, mas começou por
reunir-se em conselho para deliberar. Foi dada a ordem ao serviço de
desratização para recolher os ratos mortos. Em seguida, dois carros do serviço
de desratização deveriam transportar os animais até o forno de incineração de
lixo a fim de serem queimados. Mas, os dias se seguiram, a situação agravou-se.
O número de roedores apanhados ia crescendo e a coleta era a cada manhã mais
abundante. A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrerem em
grupos.
Dos porões, das adegas, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes,
para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres
humanos. À noite, nos corredores e nas ruelas, ouviam-se distintamente seus
guinchos de agonia. De manhã, nos subúrbios, encontravam-se estendidos nas
sarjetas com uma pequena flor de sangue nos focinhos pontiagudos; uns, inchados
e pútridos; outros, rígidos e com bigodes ainda eriçados. Na própria cidade,
eram encontrados em pequenos montes nos patamares ou nos pátios. Vinham, também,
morrer isoladamente nos vestíbulos das repartições, nos recreios das escolas,
por vezes nos terraços dos cafés.
Nossos concidadãos, estupefatos,
encontravam-nos nos locais mais frequentados das cidades. Passavam de mão em mão
diversas profecias atribuídas a magos ou a santos da Igreja Católica. Editores
da cidade viram rapidamente o proveito que poderiam tirar desta mania e
difundiram em largas edições os textos que circulavam. Quando a própria história
já não tinha profecias, encomendaram-nas a jornalistas, que, ao menos neste
ponto, se mostraram tão competentes como os seus colegas de séculos passados.
Nostradamus e Santa Odília foram, assim, consultados quotidianamente, e sempre
com proveito. O que, de resto se tornava comum a todas as profecias era o facto
de elas serem, finalmente, tranquilizadoras. Só a peste o não era. Estas
superstições substituíam, pois, para os nossos concidadãos a religião.
*
Teriam nossos concidadãos, pelo menos os que mais
haviam sofrido, se habituado à situação? Não seria
inteiramente justa essa afirmação. Seria mais exato afirmar que, tanto moral
quanto fisicamente, sofriam. No começo da peste,
lembravam-se nitidamente do ente que haviam perdido e sentiam saudade. Mas, se
se lembravam nitidamente do rosto amado, do seu riso, de determinado dia que
agora reconheciam ter sido feliz, tinham dificuldade de imaginar o que o outro
podia estar fazendo no próprio momento em que o evocavam e em lugares de agora
em diante tão longínquos. Em suma, nesse momento, tinham memória, mas uma
imaginação insuficiente. Na segunda fase da peste, perderam também a memória.
Não que tivessem esquecido esse rosto, mas, o que vem a dar no mesmo, ele
perdera a carne, já não o sentiam no interior de si próprios.
*
Pela primeira
vez, os separados não tinham repugnância em falar dos ausentes, em usar a
linguagem de todos, em examinar sua separação sob o mesmo enfoque que as
estatísticas da epidemia. Enquanto, até então, tinham subtraído ferozmente seu
sofrimento à desgraça coletiva, aceitavam agora a confusão. Sem memórias e sem
esperança, instalavam-se no presente. Na verdade, tudo se tornava presente para
eles. A peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder do amor e até mesmo
da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia
instantes.
*
Durante alguns minutos, avançaram com a mesma cadência e o mesmo
vigor, solitários, longe do mundo, libertados enfim da cidade e da peste. Rieux
foi o primeiro a parar e voltaram lentamente, a não ser num momento em que
entraram numa corrente gelada sem nada dizerem, ambos aceleraram os movimentos
fustigados por esta surpresa do mar. Novamente vestidos, partir, sem terem
pronunciado uma palavra. Mas entendiam-se, era suave a lembrança dessa noite.
Quando viram de longe a sentinela da peste, Rieux sabia que Tarrou dizia para si
próprio, como ele, que a doença acabava de esquecê-los, que isso era bom, e que
agora era preciso recomeçar. Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que
vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada.
Porque ele sabia o que esta multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros:
o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos
adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões,
nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em
que, para desgraça e ensinamento dos homens, a Peste acordaria os seus ratos e
os mandaria morrer numa cidade feliz.
Trechos do livro A peste, selecionados por
José Aléssio