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Jean-Paul Sartre

 Raramente um homem sozinho sente vontade de rir. Incomoda-me estar só. Gostaria de falar com alguém sobre o que está me acontecendo, antes que seja tarde demais, antes que eu comece a assustar os garotinhos.

 Nunca como hoje tive o sentimento tão forte de ser alguém sem dimensões secretas, limitado a meu corpo, aos pensamentos superficiais que sobem dele como bolhas. Construo minhas lembranças com meu presente. Sou repelido para o presente, abandonado nele.

 Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir de mim mesmo.

Para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, basta que nos ponhamos a narrá-lo.
 Quando se vive, nada acontece.

 Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começo. Os dias se sucedem aos dias, sem rima, nem solução: é uma soma monótona e interminável.

 De quando em quando, chega-se a um total parcial, dizendo: faz três anos que viajo, três anos que estou em Bouville.

 Também não há fim: nunca deixamos uma mulher, um amigo, uma cidade, de uma só vez. E todos os lugares se parecem: Xangai, Moscou, Argel, ao fim de uma quinzena é tudo igual.


 Trecho do livro A Náusea
  edição: José Aléssio

Albert Camus

     O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas desprevenidas. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar muito, seria idiota! E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre.

      Oran é uma cidade aparentemente moderna. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois. Também isso não é original. Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.

      Foi mais ou menos nessa época que os nossos concidadãos começaram a se inquietar, pois as fábricas e os depósitos vomitaram centenas de cadáveres de ratos. Em alguns casos, foi necessário acabar de matar os bichos, pois sua agonia era demasiado longa. Mas desde os bairros, exteriores até o centro da cidade, por toda parte onde os nossos concidadãos se reuniam, os ratos esperavam em montes, nas lixeiras ou junto às sarjetas, em longas filas.

      A imprensa da tarde ocupou-se do caso a partir desse dia e perguntou se a municipalidade se propunha ou não a agir e que medidas de urgência tencionava adotar para proteger os seus munícipes dessa repugnante invasão. A municipalidade nada se tinha proposto e nada previra, mas começou por reunir-se em conselho para deliberar. Foi dada a ordem ao serviço de desratização para recolher os ratos mortos. Em seguida, dois carros do serviço de desratização deveriam transportar os animais até o forno de incineração de lixo a fim de serem queimados. Mas, os dias se seguiram, a situação agravou-se. O número de roedores apanhados ia crescendo e a coleta era a cada manhã mais abundante. A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrerem em grupos.

      Dos porões, das adegas, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres humanos. À noite, nos corredores e nas ruelas, ouviam-se distintamente seus guinchos de agonia. De manhã, nos subúrbios, encontravam-se estendidos nas sarjetas com uma pequena flor de sangue nos focinhos pontiagudos; uns, inchados e pútridos; outros, rígidos e com bigodes ainda eriçados. Na própria cidade, eram encontrados em pequenos montes nos patamares ou nos pátios. Vinham, também, morrer isoladamente nos vestíbulos das repartições, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés.

      Nossos concidadãos, estupefatos, encontravam-nos nos locais mais frequentados das cidades. Passavam de mão em mão diversas profecias atribuídas a magos ou a santos da Igreja Católica. Editores da cidade viram rapidamente o proveito que poderiam tirar desta mania e difundiram em largas edições os textos que circulavam. Quando a própria história já não tinha profecias, encomendaram-nas a jornalistas, que, ao menos neste ponto, se mostraram tão competentes como os seus colegas de séculos passados. Nostradamus e Santa Odília foram, assim, consultados quotidianamente, e sempre com proveito. O que, de resto se tornava comum a todas as profecias era o facto de elas serem, finalmente, tranquilizadoras. Só a peste o não era. Estas superstições substituíam, pois, para os nossos concidadãos a religião.

 *
      Teriam nossos concidadãos, pelo menos os que mais haviam sofrido, se habituado à situação? Não seria inteiramente justa essa afirmação. Seria mais exato afirmar que, tanto moral quanto fisicamente, sofriam. No começo da peste, lembravam-se nitidamente do ente que haviam perdido e sentiam saudade. Mas, se se lembravam nitidamente do rosto amado, do seu riso, de determinado dia que agora reconheciam ter sido feliz, tinham dificuldade de imaginar o que o outro podia estar fazendo no próprio momento em que o evocavam e em lugares de agora em diante tão longínquos. Em suma, nesse momento, tinham memória, mas uma imaginação insuficiente. Na segunda fase da peste, perderam também a memória. Não que tivessem esquecido esse rosto, mas, o que vem a dar no mesmo, ele perdera a carne, já não o sentiam no interior de si próprios.

 *
     Pela primeira vez, os separados não tinham repugnância em falar dos ausentes, em usar a linguagem de todos, em examinar sua separação sob o mesmo enfoque que as estatísticas da epidemia. Enquanto, até então, tinham subtraído ferozmente seu sofrimento à desgraça coletiva, aceitavam agora a confusão. Sem memórias e sem esperança, instalavam-se no presente. Na verdade, tudo se tornava presente para eles. A peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes.

 *
      Durante alguns minutos, avançaram com a mesma cadência e o mesmo vigor, solitários, longe do mundo, libertados enfim da cidade e da peste. Rieux foi o primeiro a parar e voltaram lentamente, a não ser num momento em que entraram numa corrente gelada sem nada dizerem, ambos aceleraram os movimentos fustigados por esta surpresa do mar. Novamente vestidos, partir, sem terem pronunciado uma palavra. Mas entendiam-se, era suave a lembrança dessa noite. Quando viram de longe a sentinela da peste, Rieux sabia que Tarrou dizia para si próprio, como ele, que a doença acabava de esquecê-los, que isso era bom, e que agora era preciso recomeçar. Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que esta multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a Peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.

 Trechos do livro A peste, selecionados por José  Aléssio

Hermann Hesse

    ” – Você trazia no íntimo uma imagem da vida, uma fé, uma exigência; estava disposto a feitos, a sofrimentos e sacrifícios, e logo aos poucos notou que o mundo não lhe pedia nenhuma ação, nenhum sacrifício nem algo semelhante; que a vida não é nenhum poema épico, com rasgos de heróis e coisas parecidas, mas um salão burguês, no qual se vive inteiramente feliz com a comida e a bebida, o café e o tricô, o jogo de cartas e a música de rádio. E quem aspira a outra coisa e traz em si o heroico e o belo, a veneração pelos grandes poetas ou a veneração pelos santos, não passa de um louco ou de um Quixote.

      Pois bem, meu amigo, comigo também foi assim! Eu era uma jovem bem-dotada, com vocação para viver dentro de um elevado padrão, para esperar muito de mim mesma e para realizar grandes feitos. Poderia ter um belo futuro, ser a esposa de um rei, a amante de um revolucionário, a irmã de um gênio, a mãe de um mártir. E a vida só me permitiu ser uma cortesã de mediano bom gosto, o que já se vai tornando bastante difícil para mim! Foi isso o que me aconteceu. Fiquei algum tempo desconsolada e procurei com afinco a culpa em mim mesma.

      A vida, pensava eu, sempre acaba tendo razão, e se a vida se ria dos meus belos sonhos, pensava, era porque meus sonhos tinham sido estúpidos e irracionais. Mas isso não me valeu de nada. Mas como tivesse bons olhos e ouvidos, e, além disso, fosse curiosa, examinei a vida com certa atenção, observei meus vizinhos e conhecidos, mais de cinquenta pessoas e destinos, e percebi então, Harry, que meus sonhos estavam certos, estavam mil vezes certos, assim como os seus. Mas a vida, a realidade, não tinha razão.

      O fato de uma mulher da minha classe não ter alternativas senão envelhecer de uma maneira insensata e pobremente junto a uma máquina de escrever a serviço de um capitalista, ou casar-se com ele por seu dinheiro ou converter-se numa espécie de meretriz, era tão injusto quanto o de um homem como você, solitário, tímido e desesperado, ter de recorrer à navalha de barbear. Talvez a miséria em mim fosse mais material e moral, e em você mais espiritual; mas o caminho era o mesmo. Pensa que eu não pude reconhecer a sua angústia diante do foxtrote, sua repugnância pelos bares e pelos dancings, sua hostilidade para com a música de jazz e tudo o mais?

      Compreendia e muito bem, como compreendia seu horror pela política, sua tristeza pelo palavreado vão e a conduta irresponsável dos partidos e da imprensa; seu desespero diante da guerra, as passadas e as futuras; pela maneira como hoje se pensa, se lê, se edifica, se compõe música, se celebram as festas e se educa!

      Você tem razão, Lobo da Estepe, mil vezes razão, e contudo terá de perecer. Vive demasiadamente faminto e cheio de desejos para um mundo tão singelo, tão cômodo, que se contenta com tão pouco; para o mundo de hoje em dia, que lhe cospe em cima, você tem uma dimensão a mais. Quem quiser hoje viver e satisfazer-se com a vida, não pode ser uma pessoa assim como você e eu. Quem quiser música em vez de balbúrdia, alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, verdadeiro trabalho em vez de exploração, verdadeira paixão em vez de jogo, não encontrará guarida neste belo mundo…”


O lobo da Estepe, trecho. Editado por José Claisson Aléssio

George Orwell

 Quatro patas bom, duas patas ruim

Este título é o slogan dos animais que tomaram o poder numa fazenda, expulsando os seres humanos, no livro Revolução dos Bichos, de George Orwell. Começou a ser usado para fazer a revolução contra os homens; continuou, após a vitória, agora contra qualquer companheiro. A palavra dos opositores era abafada pelo grito da massa: “Quatro patas bom, duas patas ruim”.

A Revolução dos Bichos conta como os animais tomaram conta da fazenda, como os porcos tomaram a liderança dos animais, como um porco derrotou seu maior adversário. Os homens eram odiados; quatro pernas era bom, duas pernas era ruim. Até que os porcos passaram a negociar com os homens e aprenderam penosamente a andar sobre duas pernas. Os animais, perplexos, assistindo a uma confraternização entre homens e porcos, já tinham dificuldade em distinguir quem era homem, quem era porco.

O debate político atual está abafado pela gritaria, pela repetição de slogans e, pela cretinice da argumentação, tal o alarido das torcidas e o bater das ferraduras.

edição de texto: José Claisson Aléssio ( extraído do livro A Revolução dos bichos)

Bernardo Kucinski

 Confesso que já o quis morto. Pensamento que depressa afastei, assustado comigo mesmo. Necessitava tanto e tão imediatamente de alívio que não levava em conta o incomensurável sofrimento da perda do único filho. Ou talvez julgasse a perda definitiva mais suportável que a agonia infindável. Em todos esses anos, só tivemos sossego, paradoxalmente, durante os seis meses de abstinência forçada, em que cumpriu pena na cadeia pela agressão à companheira.

Muitas vezes, me perguntei: para que serve um filho desses? Se eu fosse crente, diria que veio ao mundo para nos pôr à prova. Desperdiçou todos os talentos. Deturpou todos os sentimentos. Fingiu afeição aos pais quando quis dinheiro, fingiu lealdade a amigos quando precisou de um teto. Cedo ou tarde, todos o abandonam. Seguem sua vida e o deixam para trás como a um traste. Tornou-se tão insignificante que, se deixasse subitamente de existir, apenas nós –seus pais– perceberíamos. O homem pode existir de muitas formas e pode sempre mudar a forma de existir; porém o tempo de uma existência é limitado. Metade de seu tempo se foi. Por isso, me pergunto: para que serve um filho desses?

Capítulo 54 do livro Pretérito imperfeito

André Gazola

 Mersault, o estrangeiro


A história se inicia com Mersault indo ao enterro de sua mãe. Um dia depois inicia um caso amoroso com Marie e se distrai alegremente no cinema.
Tem dois vizinhos de prédio. Um deles é Salamano, velho ranzinza cujo maior sentido na vida é castigar seu cão. O outro é Raymond, agiota de personalidade duvidosa que, no fim, é o grande responsável pelas desgraças de Mersault.
Em um dia quente Raymond, Mersault e Marie vão à praia. E é nesse cenário que o protagonista depara-se com o árabe inimigo de Raymond. O árabe puxa uma navalha e Mersault puxa o gatilho. Logo em seguida é acusado de assassinato e vai preso. Durante o processo muitos pormenores de sua vida vão adquirindo relevância extrema, como o fato de ter fumado no enterro de sua mãe. É tachado como insensível, um homem sem alma, considerado um forasteiro quanto aos ditames da sociedade. Seu advogado pouco pode fazer e Mersault recebe sentença de morte.


O protagonista da obra, Mersault, nasceu para desmascarar o cinismo e o vazio por trás da sociedade como um todo e do indivíduo como elemento principal. O homem é um nada, abandona aqueles que ama e também é abandonado. O homem é impotente perante as desgraças que presencia, e por isso mesmo finge não as ver. O Estrangeiro está ali justamente para dissecar aquilo que está errado e nos abrir os olhos para a estupidez de nossa falsas regras morais.
Para Mersault, não é preciso justificar nada, por isso ele não explica, apenas descreve. Seu silêncio reforça o mistério que seu ser emana. Se ele não tem o que dizer, simplesmente não se obriga a falar. Por isso é desesperadamente verdadeiro, sem jamais pisar no território das mentiras.

“(…)
E, com as horas de sono, as recordações, a leitura de minha ocorrência e alternância da luz e da sombra, o tempo passou. Tinha lido que na prisão se acaba perdendo a noção do tempo. Mas, para mim, isto não fazia sentido. Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser, ao mesmo tempo, curtos e longos. Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos que acabavam por se sobrepor uns aos outros. E nisso perdiam o nome. As palavras ontem ou amanhã eram as únicas que conservavam um sentido para mim.
Quando, um dia, o guarda me disse que eu estava lá há cinco meses, acreditei, mas não compreendi. Para mim, era sempre o mesmo dia, que se desenrolava na minha cela, e era sempre a mesma tarefa que eu perseguia sem cessar. Nesse dia, depois de o guarda ter saído, olhei-me na minha bacia de ferro. Pareceu-me que minha imagem ficava séria, mesmo quando tentava sorrir para ela. Agitei-a diante de mim. Sorri, e ela conservou o mesmo ar severo e triste. O dia acabava e era a hora de que não quero falar, a hora sem nome, em que os ruídos da noite subiam de todos os andares da prisão, num cortejo de silêncio. Aproximei-me da janela e, à última luz, contemplei uma vez mais a minha imagem. Continuava séria, e que há de espantoso nisso, se nesse instante eu também estava sério. Mas ao mesmo tempo, e pela primeira vez nos últimos meses, ouvi distintamente o som da minha voz. Reconhecia-a como a que ressoava há longos dias aos meus ouvidos, e compreendi que, durante este tempo, falara sozinho. Lembrei-me, então, do que dizia a enfermeira no enterro de mamãe. Não, não havia saída, e ninguém pode imaginar o que são as noites nas prisões.”

Livro: O Estrangeiro, Albert Camus

Ivan Finotti

      O extenso título "Dez Argumentos para Você Deletar Agora suas Redes Sociais" é autoexplicativo e o livro do americano Jaron Lanier cumpre o que promete. Traz uma dezena de boas razões para que você se livre de suas contas para conquistar e –para citar Walter Franco– manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.
      É uma obra fácil de ler. Cada argumento tem dez ou 20 páginas e a edição, em formato de bolso, facilita o manuseio. Para compreender o que ela entrega, nada melhor do que reproduzir seu índice logo de cara (atenção aos argumentos 3 e 7):

      1) Você está perdendo seu livre-arbítrio; 2) Largar as redes sociais é a maneira mais certeira de resistir à insanidade dos nossos tempos; 3) As redes estão tornando você um babaca; 4) Elas minam a verdade; 5) Transformam o que você diz em algo sem sentido; 6) Destroem sua capacidade de empatia; 7) Deixam você infeliz; 8) Não querem que você tenha dignidade econômica; 9) Tornam a política impossível; 10) Odeiam sua alma.

      Apesar de dividido em dez argumentos, uma ideia central perpassa todo o livro: a de que grandes empresas como Facebook (que controla ainda o Instagram e o WhatsApp) e Google (dona do Gmail e YouTube), que não cobram nada por seus serviços, têm um funcionamento que muda nosso comportamento para pior. As outras três grandes, Amazon, Apple e Microsoft também fariam isso, mas em menor escala que as duas primeiras.

      Essas empresas são chamadas por Lanier de bummers, iniciais em inglês para Comportamentos de Usuários Modificados e Transformados em um Império para Alugar. A forma como essa máquina opera são os algoritmos que estudam nossas ações por meios estatísticos e, num segundo momento, atuam para obter os efeitos desejados de maior engajamento, visando o lucro.

Marcelo Coelho

 O país estava ocupado militarmente; soldados de jipe já tinham  avisado que qualquer reunião pública estava proibida. Mas, naquele dia, um teatrinho de bonecos faz seu espetáculo na praça da cidade. As pessoas se sentam para assistir. Há um menino surdo na plateia.

No palquinho, um fantoche representa o papel de sargento. Petya, o menino surdo, espirra. O fantoche desmaia de susto. A plateia ri.

Aparece um sargento de verdade na praça, ordenando o fim da reunião. O fantoche imita o sargento real —“dispersar!”. O público gela de medo. Mas o menino surdo continua achando graça e batendo palmas.

O sargento de verdade aponta o dedo para o menino: “Você aí!”. O fantoche repete: “Você aí!”. Sonya, a mulher do teatrinho, olha o fantoche que tem nas mãos. O sargento de verdade olha para Sonya e para o marido dela, Alfonso.

“O resto de nós”, continua o poema, “olha para Petya, que se curva para trás, junta o máximo que pode de saliva na boca, e dá uma cusparada na cara do sargento”.

Kácki Aléssio

Os Bruzundangas, publicado em 1923, é obra póstuma de Lima Barreto.

O livro é um diário de viagem de um brasileiro que morou tempos na Bruzundanga, conheceu sua literatura, a escola samoieda (falsa, monótona e afastada da cultura, com autores fúteis e aconchavados com a classe dominante); sua economia confusa que exauri a riqueza do país, sendo dominada pelos cafeeiros da província de Kaphet.

Nas raízes do imaginário país grassam oportunistas, apaniguados, retrógrados e escravocratas de quatro costados. Sobre os usos e costumes das autoridades, escreve que não atendem às necessidades do povo, tampouco lhe resolvem os problemas. Cuidam de enriquecer e firmar a situação dos descendentes e colaterais. Diz: não há homem influente que não tenha parentes e amigos ocupando cargos de Estado; não há doutores da lei e deputados que não se considerem no direito de deixar aos filhos, netos, sobrinhos e primos gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. Enquanto isto, a população é escorchada de impostos e vexações fiscais; vive sugada para que parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios e aposentadorias duplicados, triplicados, afora os rendimentos que vêm de outras e quaisquer origens.