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Vinte melhores finais de livros

 A Revolução dos Bichos (George Orwell)

Tradução: Heitor Ferreira

Doze vozes gritavam cheias de ódio e eram todas iguais. Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco.


Crime e Castigo
(Fiódor Dostoiévski)
Ela esteve também comovida todo aquele dia e, à noite, voltou a ficar doente. Mas era feliz a tal ponto que quase a assustava a sua felicidade. Sete anos, só sete anos! No princípio da sua felicidade, houve alguns momentos em que tinham estado dispostos a considerar aqueles sete anos como sete dias. Ele nem sequer sabia que a vida nova não lhe seria dada gratuitamente, mas que ainda teria de comprá-la caro, pagar por ela uma grande façanha futura… Mas aqui começa já uma nova história, a história da gradual renovação de um homem, a história do seu trânsito progressivo dum mundo para outro, do seu contato com outra realidade nova, completamente ignorada até ali. Isto poderia constituir o tema duma nova narrativa… mas a nossa presente narrativa termina aqui.

On The Road
(Jack Kerouac)
Assim, na América, quando o sol se põe, eu me sento no velho e arruinado cais do rio olhando os longos, longos céus acima de Nova Jersey, e consigo sentir toda aquela terra crua e rude se derramando numa única, inacreditável e elevada vastidão, até a costa oeste, e a estrada seguindo em frente, todas as pessoas sonhando naquela imensidão, e em Iowa eu sei que agora as crianças devem estar chorando na terra onde deixam as crianças chorar, e você não sabe que Deus é a Ursa Maior? A estrela do entardecer deve estar morrendo e irradiando sua pálida cintilância sobre a pradaria, reluzindo pela última vez antes da chegada da noite completa, que abençoa a terra, escurece todos os rios, recobre os picos e oculta a última praia, e ninguém, ninguém sabe o que vai acontecer a qualquer pessoa, além dos desamparados andrajos da velhice. Penso então em Dean Moriarty, penso no velho Dean Moriarty, o pai que jamais encontramos, penso em Dean Moriarty.

Cem Anos de Solidão
(Gabriel García Márquez)
Macondo já era um pavoroso redemoinho de poeira e escombros centrifugados pela cólera do furacão bíblico quando Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo em fatos demasiado conhecidos e começou a decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse se vendo num espelho falado. Então deu outro salto para se antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias de sua morte. Porém, antes de chegar ao verso final já havia compreendido que não sairia jamais daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos, e que tudo estava escrito neles era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra.

Nada de Novo no Front
(Erich Maria Remarque)
Estou muito tranquilo. Que venham os meses e os anos, não conseguirão tirar nada de mim, não podem tirar-me mais nada. Estou tão só e sem esperança que posso enfrentá-los sem medo. A vida, que me arrastou por todos estes anos, eu ainda a tenho nas mãos e nos olhos. Se a venci, não sei. Mas enquanto existir dentro de mim — queira ou não esta força que em mim reside e que se chama “Eu” — ela procurará seu próprio caminho… Tombou morto em outubro de 1918, num dia tão tranquilo em toda a linha de frente, que o comunicado se limitou a uma frase: “Nada de novo no front”. Caiu de bruços, e ficou estendido, como se estivesse dormindo. Quando alguém o virou, viu-se que ele não devia ter sofrido muito. Tinha no rosto uma expressão tão serena, que quase parecia estar satisfeito de ter terminado assim.

A Espera dos Bárbaros
(J. M. Coetzee)
No centro da praça, algumas crianças estão construindo um boneco de neve. Acerco-me, temendo assustá-las, mas tomado de uma inexplicável alegria. Não se assustam, estão ocupadas demais para sequer me notar. Terminaram o grande corpo redondo e, agora, estão fazendo uma bola para a cabeça! — Alguém tem de ir buscar as coisas para a boca, o nariz e os olhos — diz o menino que os lidera. Ocorre-me que o boneco de neve precisará de braços também, mas não interfiro. Colocaram a cabeça sobre os ombros e, com seixos, fazem os olhos, as orelhas, o nariz e a boca. Um deles o cobre com o boné. Não está mal o boneco. Não se trata da cena com que costumo sonhar. Como tantas outras vezes atualmente, deixo-os, sentindo-me tolo, como um homem que há muito se extraviou, mas que ainda insiste em seguir pela estrada que não o levará a parte alguma.

1984
(George Orwell)
Já não corria nem dava vivas. Estava de volta ao Ministério do Amor, tudo perdoado, a alma branca de neve. Estava na tribuna dos réus, confessando tudo, implicando todos. Ia andando pelo corredor de ladrilhos brancos, com a impressão de andar ao sol, acompanhado por um guarda armado. Por fim penetrava-lhe o crânio a bala tão esperada. Levantou a vista para o rosto enorme. Levou quarenta anos para aprender que espécie de sorriso se ocultava sob o bigode negro. Oh mal-entendido cruel e desnecessário! Oh teimoso e voluntário exílio do peito amantíssimo! Duas lágrimas cheirando a gin escorreram de cada lado do nariz. Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente vencida a batalha contra si mesmo. Amava o Grande Irmão.

Lolita
(Vladimir Nabokov)
Nenhum de nós estará vivo quando o leitor abrir este livro. Mas, enquanto o sangue ainda pulsa nesta mão com que escrevo, você faz parte, como eu, da bendita matéria universal, e daqui posso te alcançar nas lonjuras do Alasca. Seja fiel a teu Dick. Não deixe que nenhum outro homem te toque. Não fale com estranhos. Espero que você ame teu bebê. Espero que seja um menino. Esse teu marido, assim espero, sempre te tratará bem, porque, se não, meu fantasma o atacará como uma nuvem de negra fumaça, como um gigante insano, e o destroçará nervo por nervo. E não tenha pena do C.Q. Era preciso escolher entre ele e o H.H., e era desejável que H.H. existisse pelo menos alguns meses a mais a fim de que você pudesse viver para sempre nas mentes das futuras gerações. Estou pensando em bisões extintos e anjos, no mistério dos pigmentos duradouros, nos sonetos proféticos, no refúgio da arte. Porque essa é a única imortalidade que você e eu podemos partilhar, minha Lolita.

Notas do Subsolo
(Fiódor Dostoiévski)
Deixem-nos sós, sem livros, e imediatamente ficaremos confusos, perdidos — não saberemos a quem nos unir, o que devemos apoiar; o que amar e o que odiar; o que respeitar e o que desprezar. Até mesmo nos é difícil ser gente — gente com seu próprio e verdadeiro corpo e sangue; sentimos vergonha disso, achamos que é um demérito e nos esforçamos para ser uma espécie inexistente de homens em geral. Somos natimortos, e há muito tempo nascemos não de pais vivos, e isso nos agrada cada vez mais. Estamos tomando gosto. Em breve vamos querer nascer da ideia, de algum modo. Mas basta, não quero mais escrever “do subsolo”… Entretanto, aqui não terminam as “notas” desse paradoxista. O autor não resistiu e prosseguiu com elas. Mas nós também pensamos que é possível terminar por aqui.

O Grande Gatsby
(F. Scott Fitzgerald)
E, quando lá me achava a meditar sobre o velho, desconhecido mundo, lembrei-me da surpresa de Gatsby, ao divisar pela primeira vez, a luz verde e existente na extremidade do ancoradouro de Daisy. Ele viera de longe, até aquele relvado azul, e seu sonho de ter-lhe parecido tão próximo, que dificilmente poderia deixar de alcança-lo. Não sabia que seu sonho já havia ficado para trás, perdido em algum lugar, na vasta obscuridade que se estendia para além da cidade, onde as escuras campinas da república se estendiam sob a noite. Gatsby acreditou na luz verde, no orgiástico futuro, que ano após ano, se afastava de nós. Esse futuro nos iludira, mas não importava: amanhã correremos mais depressa, estenderemos mais os braços… E, uma bela manhã… E assim prosseguimos, botes contra a corrente, impelidos incessantemente para o passado.

O Estrangeiro
(Albert Camus)
Pela primeira vez, em muito tempo, pensei em mamãe. Pareceu-me compreender por que, ao fim de uma vida, arranjaram um ‘noivo’, porque recomeçara. Lá, também lá, ao redor daquele asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma trégua melancólica. Tão perto da morte, mamãe deve ter-se sentido liberada e pronta a reviver tudo. Ninguém, ninguém tinha o direito de chorar por ela. Também eu me senti pronto a reviver tudo. Como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais de estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por senti-lo tão parecido comigo, tão fraternal, enfim, senti que tinha sido feliz e que ainda o era. Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio.


Carta ao Pai (Franz Kafka)
Tradução: Marcelo Backes

Uma certa legitimidade à objeção, que além do mais contribui com algo novo para a caracterização do nosso relacionamento, eu não posso negar. Naturalmente as coisas não se encaixam tão bem na realidade como as provas contidas na minha carta, pois a vida é mais do que um jogo de paciência; mas com a correção que resulta dessa réplica, uma correção que não posso nem quero discutir nos detalhes, alcançou-se a meu ver algo tão aproximado da verdade, que isso pode nos tranquilizar um pouco e tornar a vida e a morte mais fáceis para ambos.


Visões de Cody (Jack Kerouac)
Tradução: Guilherme da Silva Braga

Adeus Cody — os teus lábios nos momentos de pensamento lúcido e bondade responsável recém-descoberta são tão silenciosos, fazem tão pouco barulho, se confundem com as razões da natureza, como o reflexo da luz dos carros na pintura prateada de um tanque na calçada nesse exato instante, silencioso como tudo isso, como um pássaro atravessando o raiar do dia em busca da cruz na montanha e do mar além da cidade no fim do mundo. Adios, você que viu o sol se pôr, nos trilhos, ao meu lado, sorrindo — Adios, Rei.

Os Miseráveis (Victor Hugo)
Tradução: José Maria Machado

Esta pedra está completamente nua. Não pensaram ao talhá-la, senão no que era necessário para o túmulo; só tiveram em vista fazê-la bastante comprida e estreita, para que só cobrisse o corpo de um homem. Não se vê escrito nome algum. Há muitos anos, porém, houve quem escrevesse nela, a lápis, estes quatro versos, que pouco a pouco se tornaram ilegíveis, pela ação da chuva e da poeira, e que decerto estão hoje de todo apagados: Dorme. Viveu na terra em luta contra a sorte/ Mal seu anjo voou, pediu refúgio à morte/ O caso aconteceu por essa lei sombria/ Que faz que a noite chegue, apenas foge o dia.


Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley)
Tradução: Felisberto Albuquerque

A porta do farol estava entreaberta. Empurraram-na e penetraram na penumbra em que tudo estava fechado. Por um arco na outra extremidade da sala, podiam ver o começo da escada que levava para os andares superiores. Exatamente no fecho da abóboda pediam dois pés. — Sr. Selvagem! Lentamente, muito lentamente, como duas agulhas de bússola, os pés se voltaram para a direita: norte, nordeste, este, sudeste, sul, sul-sudoeste; então pararam e, após alguns segundos, viraram-se vagarosamente para a esquerda: sul, sudeste, este...


Orgulho e Preconceito (Jane Austen)
Tradução: Lúcio Cardoso

Depois de alguma resistência o ressentimento de Lady Catherine cedeu, talvez diante da afeição que tinha pelo sobrinho ou da curiosidade de ver como a sua esposa se conduzia; e ela consentiu em ir visitá-los em Pemberley, apesar da ofensa que seus ilustres antepassados tinham recebido, não somente pela presença de uma esposa de tão baixa extração, como pelas visitas dos seus tios de Londres. Com os Gardiner eles ficaram sempre em termos muito íntimos. Darcy, a exemplo de Elizabeth, tinha a maior afeição por eles. E além disso nunca se esqueceram da gratidão que deviam às pessoas por cujo intermédio eles tinham reatado suas relações, durante aquele passeio pelo Derbyshire.


Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra (Mia Couto)

Neste dias, deitado naquela sala sem telhado, fui contemplado por luas e por estrelas. Às vezes, me descia um frio sem remédio. Me chegavam visões de uma fundura: o abismo que nenhuma ave nunca cruzou. E eu tombando, tombando sempre. Da rocha para a pedra, da pedra para o grão, do grão para a funda cova do nada. Mas depois eu sentia-o chegar, meu filho, e a minha cabeça dedilhava em sua mão: e você escrevia as minhas cartas. Me sustinha a simples certeza: a mim ninguém, nunca, me iria enterrar. E assim veio a suceder. Fui eu, por meu passo, que me encaminhei para a terra. E me deitei como faz a tarde no amolecido chão do rio. Mais antigo que o tempo. Mais longe que o último horizonte. Lá onde nenhuma casa alguma vez engravidou o chão.


1933 Foi um Ano Ruim (John Fante)
Tradução: Lúcia Brito

Peguei o rolo de dinheiro e caminhei de volta até o misturador. Estava surrado e rebentado, como as mãos de meu pai, uma parte da vida dele, tão estranhamente antiga, como que vinda de um país distante, de Torricella Peligna. Coloquei os braços em volta dele, beijei-o com minha boca e chorei por meu pai e por todos os pais, e filhos também, por estarem vivos naquela época, por mim mesmo, porque agora eu tinha que ir para a Califórnia, eu tinha que me dar bem.


                                         Publicado  em Revista Bula

Leandro Karnal

      Ler é uma decisão e insistir em textos pode produzir um hábito. Para voar no mundo das letras, é importante saber a força das asas de cada um. Ambições elevadas demais podem estragar o projeto. Metas baixas induzem ao tédio. Se o seu desejo/hábito por livros for pequeno, comece de forma mais simples.

     Estabeleça uma meta menos ousada: cinco páginas por dia, por exemplo. Mantenha-se firme e, em uma semana, você pode ter conseguido ler dois contos ou um pequeno romance. Se os próximos meses confirmarem que você atende bem ao estipulado, vá aumentando mensalmente. Como eu digo aos alunos, decisões ambiciosas demais nos aproximam dos atletas amadores da prova de São Silvestre: saem em disparada e, poucos quarteirões após a largada, estão sentados no meio-fio, exaustos e fora da disputa. Corredores profissionais sabem da importância do ritmo constante. Fora as leituras obrigatórias de cada ramo, um ritmo acima do fraco e bem abaixo do perfeito seria de dois livros por mês. Esse ‘combustível‘ permite que você reflita, atualize e mantenha seu cérebro funcionando. Como eu disse, é abaixo do perfeito, mas quem trabalha com a ideia da perfeição nunca lê e, provavelmente, jamais casará.

     Um exemplo banal de como a leitura muda nossa visão de mundo. As pessoas comentam em casa ou no bar que o tempo está passando rápido demais? Dizem coisas de senso comum como ‘daqui a pouco estaremos no final do ano novamente‘? Bem, Allan Burdick fez uma investigação sobre o tema em Por Que o Tempo Voa. A escrita é excelente e sua noção sobre o tempo e sua aceleração (e seu uso prático) darão uma reviravolta em seu entendimento do assunto. Aqui você começa a se separar do senso comum e a perceber argumentos muito inovadores para sua cabeça e, eventualmente, suas conversas.

     Santo Agostinho citou, Shakespeare conheceu e quase todos os intelectuais clássicos leram. Refiro-me a um livro fundamental: O Asno de Ouro, de Apuleio. O autor (segundo século da nossa era) nasceu na região romanizada da atual Argélia. Culto, foi influenciado/guiado pela obra de Ovídio, As Metamorfoses. O modelo é tão forte que a obra, originalmente, apresentava o mesmo título. Foi um autor cristão, o já citado Agostinho, que batizou a obra de Asinus Aureus (O Asno de Ouro). O texto picaresco conheceu enorme difusão, dos já citados ao nosso Machado de Assis, de Monteiro Lobato a Ricardo Azevedo. É uma obra seminal e de referência.

     Por que ler um clássico? Porque ele transforma nossa maneira de pensar, fornece vocabulário, mostra raízes, disseca influências e faz um upgrade poderoso na caixa encefálica. Lembre-se ao encarar o Asno de Ouro: não é um best-seller que facilite tudo ao leitor para cativar audiência.

     O tema da felicidade foi tratado por Aristóteles, Epicuro, Epicteto e Shakespeare. Porém, hoje parece que a simples menção ao conceito já faz todo mundo dizer que é autoajuda. Nada mais enganador.

     Clássicos, temas ligados à existência e à felicidade, romances, poesias: um livro é uma alavanca e possibilita erguer o mundo, ao menos o seu mundo. Um pequeno conto de Machado, um texto de Clarice Lispector, uma peça de teatro de Nelson Rodrigues: ninguém sai igual da imersão na inteligência. Sem ler, não existe esperança de melhora. Ler é esperança pura!

Arnóbio Rocha

 Dante Alighieri, era poeta, escritor, político. Viveu numa Itália extremamente dividida e em permanente guerra civil, na idade média. Ele, por suas atividades políticas, acabou exilado de Florença, sua cidade natal; sua grande resposta aos inimigos pode ser lida na Divina Comédia. O autor distribuiu seus inimigos pelos seus pecados capitais no Infernum, segundo a geografia celeste imaginada por Ptolomeu.

  Para cada um dos setes pecados capitais , há um enorme castigo nos ciclos infernais, culminando no Nono ciclo, onde reside Lúcifer, o maior dos traidores, que atentou contra Deus. “Os traidores distribuem-se em quatro esferas diferentes, dependendo da gravidade da traição cometida. As esferas chamam-se: Caína, Antenora, Ptolomeiae, Judeca”.

     Esfera da Caína: É onde são punidos os traidores de seus parentes. Aqui as almas permanecem submersas com apenas o tórax e a cabeça fora do gelo. Seu nome tem origem no personagem bíblico Caim que matou seu irmão Abel por causa de inveja.

     Esfera da Antenora: Aqui são punidos os traidores de sua pátria ou partido político. As almas ficam submersas até a altura do pescoço, com apenas suas cabeças fora do gelo. O nome foi tirado de Antenor, o príncipe troiano que traiu o seu país ao manter uma correspondência secreta com os gregos.

     Esfera da Ptolomeiae: Aqui são punidos os traidores de seus hóspedes. As almas estão presas no gelo do lago apenas com o rosto para fora de forma que, quando choram, suas lágrimas congelam e cobrem seus olhos. O nome origina-se do personagem bíblico Ptolomeu, onde o capitão de Jericó convida Simão e seus dois filhos ao seu castelo e lá, traiçoeiramente, os mata a sangue-frio: “pois quando Simão e seus filhos haviam bebido bastante, Ptolomeu e seus homens se levantaram, e sacaram de suas armas, e chegaram até Simão na sala de ceia, e o mataram, e seus dois filhos, e parte dos seus servos.”

     Esfera da Judeca: Aqui estão aqueles que, em vida, traíram seus mestres e reis. Eles sofrem intensamente por estarem submersos totalmente no gelo do Cócito, conscientes, para a eternidade; segundo Dante, alguns estão deitados, outros encolhidos e outros de cabeça para baixo. Aqui reside Lúcifer, também preso no gelo até o meio do peito, peludo, com enormes asas que possuem membranas como a dos morcegos no lugar de penas, provoca um vento sentido por toda a esfera, ele tem três cabeças e com cada uma delas, morde um dos três maiores traidores da história: Judas, Brutus e Cassius.



Liev Tolstoi (e outros)

 Inícios de romances



Ana Karenina (Liev Tolstoi)

Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.


A hora da estrela (Clarice Lispector)

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.

Um conto de duas cidades (Charles Dickens)

Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós.

Milagrário pessoal (José Eduardo Agualusa)

As palavras, como os seres vivos, nascem de vocábulos anteriores, desenvolvem-se e fatalmente morrem. As mais afortunadas reproduzem-se. Há as de índole agreste, cuja simples presença fere e degrada, e outras que de tão amoráveis tudo à sua volta suavizam. Estas iluminam, aquelas confundem. Umas são selvagens, irascíveis, cheiram mal dos pés, fungam e cospem no chão. Outras, logo ao lado, parecem altivas e delicadas orquídeas.

Bom dia, tristeza (Françoise Sagan)

Sobre esse sentimento desconhecido cujo tédio, cuja doçura me inquietam, hesito em usar o nome, o belo e profundo nome de tristeza. É um sentimento tão completo, tão egoísta, que quase me envergonha, ao passo que a tristeza sempre me pareceu digna. Esta, eu não conhecia, mas sim o tédio, a saudade e, mais raramente, o remorso. Hoje, algo se dobra sobre mim como uma seda, leve e suave, e me separa dos outros.

Como me tornei estúpido (Martin Page)

Sempre parecera a Antoine contabilizar sua idade como os cães. Quando tinha sete anos, ele se sentia gasto como um homem de quarenta e nove anos; aos onze, tinha desilusões de um velho de setenta e sete anos. Hoje, aos vinte e cinco, na expectativa de uma vida mais tranquila, Antoine tomou a decisão de cobrir o cérebro com o manto da estupidez. Ele constatara muitas vezes que inteligência é palavra que designa baboseiras bem construídas e lindamente pronunciadas, e que é tão traiçoeira que frequentemente é mais vantajoso ser uma besta que um intelectual consagrado. A inteligência torna a pessoa infeliz, solitária, pobre, enquanto o disfarce da inteligência oferece a imortalidade efêmera do jornal e a admiração dos que acreditam no que leem.


O Estrangeiro (Albert Camus)

Hoje, minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe falecida: Enterro amanhã. Sentidos pêsames”. Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.

Bonsai (Alejandro Zambra)

No final, ela morre e ele fica sozinho, ainda que na verdade ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emília. Digamos que ela se chama ou se chamava Emília e que ele se chama, se chamava e continua se chamando Júlio. Júlio e Emília. No final, Emília morre e Júlio não morre. O resto é literatura.

Os devaneios do caminhante solitário (Jean-Jacques Rousseau)

Eis-me, portanto, sozinho sobre a terra, sem outro irmão, próximo, amigo ou companhia que a mim mesmo. O mais sociável e o mais afetuoso dos humanos dela foi proscrito por um acordo unânime.

editado por José Claisson Aléssio

George Orwell ( e outros)

 


1984
(George Orwell)
Já não corria nem dava vivas. Estava de volta ao Ministério do Amor, tudo perdoado, a alma branca de neve. Estava na tribuna dos réus, confessando tudo, implicando todos. Ia andando pelo corredor de ladrilhos brancos, com a impressão de andar ao sol, acompanhado por um guarda armado. Por fim penetrava-lhe o crânio a bala tão esperada. Levantou a vista para o rosto enorme. Levou quarenta anos para aprender que espécie de sorriso se ocultava sob o bigode negro. Oh mal-entendido cruel e desnecessário! Oh teimoso e voluntário exílio do peito amantíssimo! Duas lágrimas cheirando a gin escorreram de cada lado do nariz. Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente vencida a batalha contra si mesmo. Amava o Grande Irmão.

Nada de Novo no Front
(Erich Maria Remarque)
Estou muito tranquilo. Que venham os meses e os anos, não conseguirão tirar nada de mim, não podem tirar-me mais nada. Estou tão só e sem esperança que posso enfrentá-los sem medo. A vida, que me arrastou por todos estes anos, eu ainda a tenho nas mãos e nos olhos. Se a venci, não sei. Mas enquanto existir dentro de mim — queira ou não esta força que em mim reside e que se chama “Eu” — ela procurará seu próprio caminho… Tombou morto em outubro de 1918, num dia tão tranquilo em toda a linha de frente, que o comunicado se limitou a uma frase: “Nada de novo no front”. Caiu de bruços, e ficou estendido, como se estivesse dormindo. Quando alguém o virou, viu-se que ele não devia ter sofrido muito. Tinha no rosto uma expressão tão serena, que quase parecia estar satisfeito de ter terminado assim.

Notas do Subsolo
(Fiódor Dostoiévski)
Deixem-nos sós, sem livros, e imediatamente ficaremos confusos, perdidos — não saberemos a quem nos unir, o que devemos apoiar; o que amar e o que odiar; o que respeitar e o que desprezar. Até mesmo nos é difícil ser gente — gente com seu próprio e verdadeiro corpo e sangue; sentimos vergonha disso, achamos que é um demérito e nos esforçamos para ser uma espécie inexistente de homens em geral. Somos natimortos, e há muito tempo nascemos não de pais vivos, e isso nos agrada cada vez mais. Estamos tomando gosto. Em breve vamos querer nascer da ideia, de algum modo. Mas basta, não quero mais escrever “do subsolo”… Entretanto, aqui não terminam as “notas” desse paradoxista. O autor não resistiu e prosseguiu com elas. Mas nós também pensamos que é possível terminar por aqui.

On The Road
(Jack Kerouac)
Assim, na América, quando o sol se põe, eu me sento no velho e arruinado cais do rio olhando os longos, longos céus acima de Nova Jersey, e consigo sentir toda aquela terra crua e rude se derramando numa única, inacreditável e elevada vastidão, até a costa oeste, e a estrada seguindo em frente, todas as pessoas sonhando naquela imensidão, e em Iowa eu sei que agora as crianças devem estar chorando na terra onde deixam as crianças chorar, e você não sabe que Deus é a Ursa Maior? A estrela do entardecer deve estar morrendo e irradiando sua pálida cintilância sobre a pradaria, reluzindo pela última vez antes da chegada da noite completa, que abençoa a terra, escurece todos os rios, recobre os picos e oculta a última praia, e ninguém, ninguém sabe o que vai acontecer a qualquer pessoa, além dos desamparados andrajos da velhice. Penso então em Dean Moriarty, penso no velho Dean Moriarty, o pai que jamais encontramos, penso em Dean Moriarty.

A Espera dos Bárbaros
(J. M. Coetzee)
No centro da praça, algumas crianças estão construindo um boneco de neve. Acerco-me, temendo assustá-las, mas tomado de uma inexplicável alegria. Não se assustam, estão ocupadas demais para sequer me notar. Terminaram o grande corpo redondo e, agora, estão fazendo uma bola para a cabeça! — Alguém tem de ir buscar as coisas para a boca, o nariz e os olhos — diz o menino que os lidera. Ocorre-me que o boneco de neve precisará de braços também, mas não interfiro. Colocaram a cabeça sobre os ombros e, com seixos, fazem os olhos, as orelhas, o nariz e a boca. Um deles o cobre com o boné. Não está mal o boneco. Não se trata da cena com que costumo sonhar. Como tantas outras vezes atualmente, deixo-os, sentindo-me tolo, como um homem que há muito se extraviou, mas que ainda insiste em seguir pela estrada que não o levará a parte alguma.

Cem Anos de Solidão
(Gabriel García Márquez)
Macondo já era um pavoroso redemoinho de poeira e escombros centrifugados pela cólera do furacão bíblico quando Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo em fatos demasiado conhecidos e começou a decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse se vendo num espelho falado. Então deu outro salto para se antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias de sua morte. Porém, antes de chegar ao verso final já havia compreendido que não sairia jamais daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos, e que tudo estava escrito neles era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra.

Lolita
(Vladimir Nabokov)
Nenhum de nós estará vivo quando o leitor abrir este livro. Mas, enquanto o sangue ainda pulsa nesta mão com que escrevo, você faz parte, como eu, da bendita matéria universal, e daqui posso te alcançar nas lonjuras do Alasca. Seja fiel a teu Dick. Não deixe que nenhum outro homem te toque. Não fale com estranhos. Espero que você ame teu bebê. Espero que seja um menino. Esse teu marido, assim espero, sempre te tratará bem, porque, se não, meu fantasma o atacará como uma nuvem de negra fumaça, como um gigante insano, e o destroçará nervo por nervo. E não tenha pena do C.Q. Era preciso escolher entre ele e o H.H., e era desejável que H.H. existisse pelo menos alguns meses a mais a fim de que você pudesse viver para sempre nas mentes das futuras gerações. Estou pensando em bisões extintos e anjos, no mistério dos pigmentos duradouros, nos sonetos proféticos, no refúgio da arte. Porque essa é a única imortalidade que você e eu podemos partilhar, minha Lolita.

Crime e Castigo
(Fiódor Dostoiévski)
Ela esteve também comovida todo aquele dia e, à noite, voltou a ficar doente. Mas era feliz a tal ponto que quase a assustava a sua felicidade. Sete anos, só sete anos! No princípio da sua felicidade, houve alguns momentos em que tinham estado dispostos a considerar aqueles sete anos como sete dias. Ele nem sequer sabia que a vida nova não lhe seria dada gratuitamente, mas que ainda teria de comprá-la caro, pagar por ela uma grande façanha futura… Mas aqui começa já uma nova história, a história da gradual renovação de um homem, a história do seu trânsito progressivo dum mundo para outro, do seu contato com outra realidade nova, completamente ignorada até ali. Isto poderia constituir o tema duma nova narrativa… mas a nossa presente narrativa termina aqui.

O Grande Gatsby
(F. Scott Fitzgerald)
E, quando lá me achava a meditar sobre o velho, desconhecido mundo, lembrei-me da surpresa de Gatsby, ao divisar pela primeira vez, a luz verde e existente na extremidade do ancoradouro de Daisy. Ele viera de longe, até aquele relvado azul, e seu sonho de ter-lhe parecido tão próximo, que dificilmente poderia deixar de alcança-lo. Não sabia que seu sonho já havia ficado para trás, perdido em algum lugar, na vasta obscuridade que se estendia para além da cidade, onde as escuras campinas da república se estendiam sob a noite. Gatsby acreditou na luz verde, no orgiástico futuro, que ano após ano, se afastava de nós. Esse futuro nos iludira, mas não importava: amanhã correremos mais depressa, estenderemos mais os braços… E, uma bela manhã… E assim prosseguimos, botes contra a corrente, impelidos incessantemente para o passado.

O Estrangeiro
(Albert Camus)
Pela primeira vez, em muito tempo, pensei em mamãe. Pareceu-me compreender por que, ao fim de uma vida, arranjaram um ‘noivo’, porque recomeçara. Lá, também lá, ao redor daquele asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma trégua melancólica. Tão perto da morte, mamãe deve ter-se sentido liberada e pronta a reviver tudo. Ninguém, ninguém tinha o direito de chorar por ela. Também eu me senti pronto a reviver tudo. Como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais de estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por senti-lo tão parecido comigo, tão fraternal, enfim, senti que tinha sido feliz e que ainda o era. Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio.

Trechos, editados por José Claisson Aléssio

Inícios de livros

 Dom Quixote

(Miguel de Cervantes)

Desocupado leitor: sem juramento meu embora, poderás acreditar que eu gostaria que este livro, como filho da razão, fosse o mais formoso, o mais primoroso e o mais judicioso e agudo que se pudesse imaginar. Mas não pude eu contravir a ordem da natureza, que nela cada coisa engendra seu semelhante. E, assim, o que poderá engendrar o estéril e mal cultivado engenho meu, senão a história de um filho seco, murcho, antojadiço e cheio de pensamentos díspares e nunca imaginados por ninguém mais, exatamente como quem foi engendrado num cárcere, onde toda a incomodidade tem assento e onde todo o triste barulho faz sua habitação?


Cem Anos de Solidão
(Gabriel García Márquez)

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, cons­truídas à margem de um rio de águas diá­fanas que se precipitavam por um lei­to de pedras polidas, brancas e enor­mes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para men­cioná-las se precisava apontar com o dedo.

A Lua Vem da Ásia
(Campos de Carvalho)

Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa — e qual defesa seria mais legítima? — logrei ser absolvido por cinco votos a dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.

João Pereira Coutinho

 O livro das nossas vidas: difícil, não? Tempos atrás, perguntaram-me qual era. O pretexto era nobre: estar na biblioteca nacional de Brasília para partilhar com o público essa sagrada escolha.


Hesitei. Não existe o livro da vida. Existem livros, no plural, que se vão acumulando como pegadas no caminho. Escolher um é esquecer todos os outros. Aliás, é esquecer que o livro da vida vai mudando com a vida: o que era fundamental aos 20 já não é aos 40. E não será aos 60 ou 80, se lá chegar.
Fiz uma lista. Dividi por etapas, com a devida vênia a Tolstoi: infância, adolescência, juventude. Comecei nas histórias de Conan Doyle (sim, Sherlock Holmes foi o primeiro e único ídolo que tive em 42 anos) e terminei com Edward St. Aubyn e as novelas do quinteto “Patrick Melrose”, o mais recente monumento literário que me passou pelas mãos.

E então vi que um autor se repetia nas minhas múltiplas encarnações: Jonathan Swift. Nasceu em Dublin, em 1667. Morreu na mesma cidade em 1745. E o livro é, sem surpresas, “As Viagens de Gulliver”. Todo mundo conhece a história: Lemuel Gulliver, médico e capitão de vários navios,
relata as suas desventuras em reinos fantásticos. Quando chega a Lilipute, é gigantesco para uma gente tão minúscula. Quando chega a Brobdingnag, é minúsculo para uma população tão gigantesca.

Depois desses terrores de escala, Gulliver conhece ainda os sábios de Laputa, os acadêmicos de Lagado e a raça infame dos “yahoos”, termo com que os cavalos designam os seres humanos. Quando termina as suas viagens, Gulliver é uma sombra do homem que foi: melancólico e misantropo, ele deseja apenas ser deixado em paz. Gostar de Swift na infância é fácil de explicar: li-o em volume que ainda conservo, com mais ilustrações do que texto. Mas esse Gulliver infantil não conta: é apenas uma parte, uma pequena parte, do texto original. Para ser preciso, limita-se aos dois primeiros livros das “Viagens” (são quatro no total). Para uma criança, a história de um viajante que conhece reinos minúsculos e reinos maiúsculos chega e sobra para a encantar. Só reencontrei Swift na adolescência e então surgiu-me o Gulliver todo, nos seus quatro livros magistrais. Foi a minha educação sentimental: as “Viagens” não eram apenas entretenimento. Eram uma condenação profunda da soberba humana como eu nunca tinha visto antes —e como eu nunca mais voltei a ver depois.

Essa soberba, retratada a golpes satíricos brutais, é especialmente impressionante quando o herói conhece os habitantes de Laputa ou os acadêmicos de Lagado. São todos tão sábios, tão brilhantes, tão racionalistas, que chegam a raiar a mais pura imbecilidade, sobretudo em questões de senso comum.
O meu anti-intelectualismo, provavelmente excessivo, nasceu com Gulliver. E um certo desprezo pela “humanidade” foi a herança que colhi no livro: quando Gulliver chega à conclusão que os cavalos são mais civilizados do que os homens, a minha vontade instintiva foi relinchar de concórdia.

Voltei às “Viagens” nos anos seguintes, só para alimentar o meu pessimismo. E voltei agora, na meia-idade, depois de aceitar o desafio de Brasília. A prosa continua soberba; e a crítica de Swift à nossa arrogância moral, intelectual ou política permanece inultrapassável: depois de ler as “Viagens”, e em especial o encontro de Gulliver com os fantasmas dos grandes heróis da história, só acredita em messias
quem desistiu de pensar. Mas dessa vez o próprio Gulliver pareceu-me mais deplorável do que os seres
deploráveis que ele encontra nas viagens. O capitão não é apenas um personagem pícaro, tosco, crédulo; mas a personificação dos vícios graves —a crueldade, a arrogância, a desumanidade— que ele só vê nos outros.

Está tudo no último livro, o mais polêmico dos quatro, quando Gulliver adquire uma repugnância extrema pelos seres humanos e uma admiração excessiva pelos equinos. De tal forma que, ao regressar a casa, a simples visão da mulher e dos filhos desperta nele sentimentos de horror. Devemos ver na reclusão de Gulliver uma medalha de honra? Ou será antes um vício intolerável de caráter e a forma mais trágica de vaidade? Aos 42, inclino-me para a segunda hipótese: há momentos em que o desprezo pela humanidade nos cega para o que ainda merece ser salvo. Mas prometo voltar a Gulliver quando chegar aos 62. Como sempre acontece na experiência da leitura, o livro que eu irei encontrar será
apenas o reflexo da pessoa em que eu me tornei.

Hermann Hesse

 Demian


“Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem que busca.”

“A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro.”

“Desses acontecimentos, que ninguém percebe, é que se nutre a linha de nosso destino. A falha, a rachadura se fecham mais tarde; podem cicatrizar e cair no esquecimento; mas em nossa câmara secreta mais recôndita nunca cessam de sangrar.”

Se observarmos uma pessoa com suficiente atenção, acabaremos por saber mais a seu respeito do que a própria pessoa.

(…) É necessário perguntar-se sempre, duvidar sempre.


“Não creio que se possam considerar homens todos esses bípedes que caminham pelas ruas, simplesmente porque andam eretos ou levem nove meses para vir à luz. Sabes muito bem que muitos deles não passam de peixes ou de ovelhas, vermes ou sanguessugas.”

“Quando me comparava com os demais, sentia-me muitas vezes orgulhoso e satisfeito comigo mesmo, e em outras tantas deprimido e humilhado. Ora me acreditava um verdadeiro gênio, ora fraco do juízo. Não me era possível compartilhar a vida e as alegrias dos outros rapazes de minha idade, e às vezes reprovava asperamente o meu isolamento e sentia profunda tristeza, crendo-me definitivamente afastado de todos os meus semelhantes, com todas as portas da vida fechadas irrevogavelmente para mim.”

“Não há porque te comparares com os demais, e se a natureza te criou para morcego, não deves aspirar a ser avestruz. Às vezes te consideras por demais esquisito e te reprovas por seguires caminhos diversos dos da maioria. Deixa-te disso. Contempla o fogo, as nuvens, e quando surgirem presságios e as vozes soarem em tua alma, abandona-te a elas sem perguntares se isso convém ou é do gosto do senhor teu pai ou do professor ou de algum bom deus qualquer.

“A única realidade é aquela que se contém dentro de nós, e se os homens vivem tão irrealmente é porque aceitam como realidade as imagens exteriores e sufocam em si a voz do mundo inteiro. Também se pode ser feliz assim; mas quando se chega a conhecer o outro, torna-se impossível seguir o caminho da maioria. O caminho da maioria é fácil, o nosso é penoso. Caminhemos.”

Seria mais digno e mais acertado estar simplesmente à disposição do destino, sem aspirações de qualquer ordem. Mas não posso decidir-me a ficar tão desnudo e tão só em meio da vida; também eu sou um pobre cão fraco, que necessita de um pouco de calor e de alimento.

“O que hoje existe não é comunidade, é simplesmente rebanho. Os homens se unem porque têm medo uns dos outros e cada um se refugia entre seus iguais: rebanho de patrões, rebanho de operários, rebanho de intelectuais…E por que têm medo? Só se tem medo quando não se está de acordo consigo mesmo.”

“Nunca se chega ao porto.”

Frases de Demian, livro de Hermann Hesse
edição: José Claisson Aléssio



Graciliano Ramos*

 “[Fabiano] Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopeias.

 Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.”
“Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros, mas não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem remediado ser cortês. Até o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele. Ah! Quem disse que não obedeciam?

Os outros brancos eram diferentes. O patrão atual, por exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor, o Fabiano ouvia as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha dúvida?”

“Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa. Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O patrão realizava com pena e tinta cálculos incompreensíveis. Da última vez que se tinham encontrado houvera uma confusão de números, e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara indignado o escritório do branco, certo de que fora enganado. Todos lhe davam prejuízo. Os caixeiros, os comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o couro, e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar nas ruas, tropeçando. Por isso Fabiano se desviava daqueles viventes.

Estava convencido de que todos os habitantes da cidade eram ruins. Mordeu os beiços. Não poderia dizer semelhante coisa. Por falta menor aguentara facão e dormira na cadeia.”



Trecho de Vidas Secas
edição: José Aléssio

Dante Alighieri

Deixai toda esperança, vós que entrais!
 – Não tenhas medo – respondeu Virgílio, experiente – mas não sejas fraco!
 Aqui chegamos ao lugar, do qual antes te falei, onde encontraríamos as almas sofredoras que já perderam seu livre poder de arbítrio.
 Não temas, pois tu não és uma delas, tu ainda vives.
 Em seguida, Virgílio segurou minha mão, sorriu para me dar confiança, e me guiou na direção daquele sinistro portal.
 Logo que entrei ouvi gritos terríveis, suspiros e prantos que ecoavam pela escuridão sem estrelas. Os lamentos eram tão intensos que não me contive e chorei. Gritos de mágoa, brigas, queixas iradas em diversas línguas formavam um tumulto que tinha o som de uma ventania.
 Eu, com a cabeça já tomada de horror, perguntei: – Mestre, quem são essas pessoas que sofrem tanto?
 – Este é o destino daquelas almas que não procuraram fazer o bem divino, mas também não buscaram fazer o mal. – me respondeu o mestre.
 – Se misturam com aquele coro de anjos que não foram nem fiéis nem infiéis ao seu Deus. Tanto o céu quanto o inferno os rejeita.
 – Mestre – continuei -, a que pena tão terrível estão esses coitados submetidos para que lamentem tanto? – Te direi em poucas palavras. Estes espíritos não têm esperança de morte nem de salvação. O mundo não se lembrará deles, a misericórdia e a justiça os ignoram. Deixe-os. Só olha, e passa.

 Trecho da Divina Comédia
 edição: José  Aléssio

Francisco Daudt

 Pobre Édipo, passou à história como alguém que matou o pai e se deitou com a mãe. E pior, se sentiu culpado disso tudo. Mas… a verdade é essa mesma?


     Vejamos: quando ele ainda estava na barriga de Jocasta, rainha de Tebas, Laio, o rei seu pai, foi procurar o Oráculo de Delfos para saber da pitonisa o futuro de seu filho. Não é que a vidente disse que ele quando crescesse iria matar o pai e se casar com a mãe? Laio então decidiu matar o bebê antes! Deu-o a um escravo para que fizesse o trabalho sujo, mas este se apiedou do menino e o abandonou na floresta. Foi assim que o príncipe de Tebas, recolhido por um pastor, parou nas mãos dos reis de Corinto, que o adotaram como filho natural (escondendo sua condição de adotado: atenção, que isso é importante).

      Já crescido, alguém resolve lhe fazer mal e revela sua adoção. Ele, chocado, vai aonde? Procurar a pitonisa de Delfos para saber de sua vida! Você já imagina o que ela lhe disse: a mesma coisa que disse para Laio. Tentando fugir desse destino (de matar o rei de Corinto, que ele julgava ser seu pai), foge para… Tebas! Na estrada, é atacado pelos batedores do rei de Tebas e acaba matando – em legítima defesa – Laio, seu pai biológico (que tentava assassiná-lo pela segunda vez).

     Antes de entrar em Tebas, enfrenta a esfinge (uma fera mitológica que devorava viajantes), decifra seu enigma e a mata, tornando-se herói. Como prêmio, é forçado a se casar com a rainha viúva… Jocasta!

     No fim da peça de Sófocles ele descobre tudo e fica arrasado de tanta culpa, ao ponto de se cegar.

     Agora eu te pergunto: Édipo merece essa fama maldita? A meu ver, ele foi colocado numa arapuca inescapável, metido num problema que não era dele, era dos pais. Não deixaram Édipo viver sua própria vida. Ele foi atrelado à vida dos pais, aos assuntos dos pais. E mesmo os reis de Corinto, seus pais de adoção, deixaram uma armadilha esperando por ele, ao sonegar-lhe sua verdadeira história.

     Freud considerou que, assim como Édipo, nós não poderíamos fugir ao nosso destino: ficaríamos de algum jeito marcados pelos assuntos/problemas de nossos pais. Concordo. A nossa espécie é muito dependente de ter adultos que criem os filhos por longo tempo, nascemos muito frágeis, e é esse tempo de exposição que faz com que a criança se enrole na incompetência de quem a criou.

     Resumindo: o complexo de Édipo dos filhos está nas mãos dos pais.



Jean- Paul Sartre

“Sou livre: já não me resta nenhuma razão para viver, todas as que tentei cederam e já não posso imaginar outras. Ainda sou bastante jovem, ainda tenho força bastante para recomeçar. Mas recomeçar o quê? Só agora compreendo o quanto, no auge de meus terrores, de minhas náuseas, tinha contado com Anny para me salvar. Meu passado está morto. O sr. de Rollebon está morto, Anny só retornou para me tirar toda esperança. Estou sozinho nessa rua branca guarnecida por jardins. Sozinho e livre. Mas essa liberdade se assemelha um pouco à morte. Hoje minha vida chega ao fim. Amanhã terei deixado essa cidade que se estende a meus pés, onde vivi durante tanto tempo. Ela passará a ser apenas um nome, atarracado, burguês, bem francês, um nome em minha memória, menos rico que os de Florença ou Bagdá. Chegará uma época em que me perguntarei: “Mas, afinal, quando estava em Bouville, o que era mesmo que fazia durante o dia?” E desse sol, dessa tarde, não restará nada, nem mesmo uma lembrança. Toda a minha vida está atrás de mim. Vejo-a inteiramente, vejo sua forma e seus movimentos lentos que me trouxeram até aqui. Há pouco a dizer sobre ela: é uma partida perdida, eis tudo. Faz três anos que entrei em Bouville. Tinha perdido o primeiro jogo. Quis jogar o segundo e também perdi: perdi a partida. Concomitantemente aprendi que se perde sempre. Só os Salafrários pensam que ganham. Agora vou fazer como Anny, vou sobreviver a mim mesmo. Comer, dormir. Dormir, comer. Existir lentamente, suavemente, como essas árvores, como uma poça d’água, como o banco vermelho do bonde." Trecho de A Náusea edição: José Claisson Aléssio

Samuel Beckett

      Todos os dias, num local à beira de uma estrada deserta, Vladimir e Estragon, esperam Godot. Mas nada acontece, ninguém chega, ninguém parte. E Godot, que não saberemos quem é ou o que significa, nunca virá. Para preencher o tédio dos dias vazios e sempre iguais, Vladimir e Estragon falam um com o outro até a exaustão, mesmo sem terem nada que dizer.


     Se a espera é certa, se as respostas não virão, o melhor mesmo é “jogar” a vida, mesmo que de vez em quando paremos para refletir a respeito das perguntas sem resposta e sentir o peso da existência. E é dessa falta de noção que surge com grande força a constatação maior da obra de Beckett: a vida é assim mesmo, o jogo é esse. Eles tentam outra e outra vez… Um dia, outro dia… Tédio, desesperança, jogos, ações… As cabeças deles não param, mas os corpos estão cansados.

Paulo Nogueira

 Os cinco autores fundamentais, aqueles que escreveram em português melhor que ninguém, na minha avaliação:


1) Machado de Assis. Sobriedade, elegância, precisão, ironia fina. De Machado, Memórias Póstumas, Dom Casmurro e Quincas Borba são vitais, e alguns contos, como O Alienista e A Cartomante, vão também encantar o leitor mesmo na segunda ou terceira leitura. Tenho uma paixão particular por um conto de menor relevância de Machado, Um Capitão de Voluntários, uma história de amor traído e de arrependimento sincero e comedido que li muitas vezes. E tenho uma opinião convicta sobre a controvérsia a respeito da traição ou não de Capitu em Dom Casmurro. Não há evidência que sustente o adultério além da versão subjetiva de Bentinho, o marido. Assim, ele diz que Capitu o traiu com seu melhor amigo, Escobar. Não quer dizer que isso seja verdade. A mesma situação aparece num romance de um dos maiores escritores da era moderna, John Upkide, A Versão de Roger. O narrador, Roger, acredita que sua mulher o está enganando. Updike já no título colocou a ressalva: é a versão do marido.


2) Eça de Queiroz. Eloquência, beleza plástica nas frases, humor ferino, espírito cosmopolita. Os Maias é o melhor romance de Eça, um retrato deslumbrante dos meios intelectuais lisboetas na segunda metade do século XIX. A amizade entre Carlos e Ega é comovente. Carlos se apaixona pela irmã, Maria Eduarda, sem saber. A mãe fugira com um canalha italiano quando ela era bebê, e Carlos uma criança. Sumiram, nunca mais se soube delas, e quando uma mulher linda aparece em Lisboa Carlos não tinha como desconfiar que podia ser quem era.


3) Rubem Braga. Lirismo, musicalidade nas frases, elegância, poesia em prosa. A crônica é um gênero literário considerado menor, mas Rubem Braga destruiu este preconceito com sua escrita sublime e é hoje amplamente tido como um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Há uma coletânea de 200 crônicas, da Record, que reúne o melhor de Rubem. Tenho-a sempre por perto, e de tempos em tempos vou direto a Quarto de Moça, ou O Rei Secreto de França, ou A Moça Chamada Pierina, e me deixo levar pela brisa poética de Rubem.

Teve muitas mulheres, mesmo não sendo rico ou bonito, mas jamais achei isso esquisito. Como Demóstenes, o sábio grego que decidiu ser orador ao ver em Atenas, garoto, um advogado salvar um réu claramente culpado pela capacidade de articular pensamentos e frases, Rubem conhecia o poder das palavras. Tão singular era que, ao saber que estava condenado à morte, por um câncer que provavelmente decorrera de sua compulsão em fumar, fez questão de ele mesmo ir a uma funerária e escolher um caixão. Quando o vendedor perguntou para quem era, Rubem disse que era para ele mesmo.

Luiz Felipe Pondé

 Talvez uma das passagens mais famosas do Evangelho seja aquela em que umas pessoas trazem uma mulher aos prantos, envergonhada, e a jogam aos pés de Jesus. Ela tinha sido pega transando com outro homem que não o seu marido. Um horror até hoje. Uma adúltera (que não tem nada a ver com Maria Madalena!).


As pessoas que a levaram perguntaram a Jesus se ela não deveria ser morta por apedrejamento, como rezava a lei de Moisés. Era uma armadilha para testar se Jesus era fiel às leis de Israel ou se era algum tipo de herege.

É fácil imaginar que leis como essas visavam garantir a fidelidade da mulher e, com isso, a paternidade dos filhos.
Façamos um exercício literário bíblico. Na Bíblia, outro personagem muito famoso, que para os cristãos era ancestral de Jesus, o Rei Davi, passou por uma semelhante. Davi se apaixonou por Batsheva (Betsabá), mulher de um dos seus generais mais fiéis.

Davi, segundo a tradição, escreveu os Salmos. Homem de coração apaixonado, ambicioso, libidinoso, mas profundamente sincero, e Deus gosta dos corajosos, sinceros e humildes. Ele engravidou a mulher do general (logo, ela era uma adúltera) e armou uma situação para parecer que ela estava grávida do marido.

Em seguida, armou outra para o general morrer na guerra que estava acontecendo ao norte do reino israelita. O militar morreu, mas a história não colou. Davi queria que sua amada escapasse do apedrejamento que “merecia” por lei. Mas não adiantou, o povo foi atrás. O povo adora apedrejar adúlteras e detesta quem as perdoa. O povo odeia o perdão.

As pessoas clamaram pelo apedrejamento da adúltera às portas de Jerusalém, inclusive porque os homens santos diziam que a seca infame que Israel sofria àquela altura era castigo pelo adultério real.
Davi se recusou a entregar sua amada e foi pedir a Deus, pessoalmente, na tenda onde ficava a Arca da Aliança, para que perdoasse Batsheva e o punisse, afinal Davi era o rei, enquanto ela era uma coitada que tinha de obedecê-lo —apesar de saber que ela também o amava e o desejava, portanto, também era responsável pelo pecado do adultério.

Sendo Davi ele mesmo um pecador por ter armado tudo que armou, deveria ser destruído pelas chamas do céu ao tocar a Torá, na qual só os puros poderiam encostar.

Mas não. Deus o perdoa e faz chover sobre Israel. A sinceridade de Davi, reconhecendo que ele mesmo merecia morrer, e não ela, e o pedido para que ele fosse castigado, e não ela, faz Deus ficar comovido.
O povo, impressionado, aprende ali que Deus é misericordioso e que a lei não esgota a relação entre nós e Ele.

Davi se casa então com Batsheva, e deles nasce Salomão: o futuro rei sábio da Israel antiga, autor, segundo a tradição, dos livros de sabedoria israelita, entre eles o Cântico dos Cânticos, uma história de amor proibido.

Davi, na tradição judaica, é o bem-amado de Deus, o preferido entre os heróis do Antigo Testamento. Por quê?

Quem somos nós pra saber o que se passa no coração de Deus, mas talvez Davi seja querido justamente porque sabe que não merece o perdão e não o barganha —no lugar disso, pede que ele salve a mulher amada.

Deus não resiste à sinceridade e ao amor verdadeiro, que pode custar a vida de quem ama. Por isso, o caminho mais reto para o coração divino é a verdade. A verdade comove o coração da divindade israelita.
Voltando a Jesus e à adúltera, a reposta dada pelo Cristo é famosa. Ele reconhece que a mulher pecou, e ela também, e que a lei é a lei. Mas pede que aquele que tiver o coração puro atire a primeira pedra.

Jesus, como Deus na história de Davi e Batsheva, comove-se com a dor da mulher humilhada e desafia os “puros” de coração a aplicar a lei. Ninguém atira a primeira pedra, porque não existem os puros de coração, pelo menos entre os que assim pensam de si mesmos.

Essa passagem é fundamental para uma época com tantos santos desfilando pelo mundo. A Bíblia nos ensina que a virtude não está onde parece se revelar, orgulhosa de si mesma (evidente contradição, não?).
A virtude está no desespero de Davi diante do possível apedrejamento da mulher que ele desgraçou. A virtude está naquela adúltera desesperada pega em pecado evidente diante dos seus juízes.

Enfim, a virtude está no pecador que sabe quem é. Por isso, uma das velhas e maiores máximas do mundo bíblico é: só os pecadores verão a Deus.

Marta Rebón

Freud dizia que as palavras e a magia foram no princípio a mesma coisa. É por isso que continuamos procurando refúgio nos livros quando a vida nos prega uma brincadeira estúpida? Você, passageiro em momentos ruins, abre um romance e em suas páginas encontra algo parecido a um bote salva-vidas, um alívio balsâmico ao desassossego. Os leitores vorazes sabem bem que as bibliotecas e as livrarias são uma panaceia eficaz à alma, como já se afirmava na Antiguidade. A ficção e a poesia, afirma a romancista Jeanette Winterson, são remédios que curam a ruptura que a realidade provoca em nossa imaginação. Como diz a máxima horaciana dulce et utile, nos ensinam prazerosamente. O eco das palavras, seu ritmo, e as imagens com uma grande carga emocional inundam e ativam os recônditos de nossa consciência. Quando lemos um texto literário inteligente e sedutor, o mundo se torna mais habitável. Entre os benefícios de se ler ficção, o primeiro, por mais óbvio que pareça, é chegar a nos conhecer melhor. Proust, a quem hoje poucos negarão sua aptidão à ciência cognitiva, afirmava que cada leitor, quando lê, é o próprio leitor de si mesmo. Acrescentava que a obra do escritor não é mais do que uma espécie de instrumento ótico que este oferece ao outro para permitir-lhe discernir o que, sem esse livro, não seria capaz de ver por si mesmo. Entrar no universo dos romances é viver múltiplas vidas. Com um livro nas mãos se abre diante de nós um terreno para a experimentação de inúmeras circunstâncias. A biblioterapia é possível graças ao choque de identificação que se produz no leitor quando se vê refletido na história. Sentimos empatia por outras pessoas, outras formas de pensar. A leitura, além disso, é uma aventura intelectual trepidante. Para o Nobel de Literatura André Gide, ler um escritor não é só ter uma ideia do que ele diz, mas viajar com ele. Ler nos coloca em um espaço intermediário: ao mesmo tempo em que deixamos em suspenso nosso eu, nos conecta com nossa essência mais íntima, um bem valioso para se manter certo equilíbrio nesses tempos de distração. A leitura, dizia María Zambrano, nos brinda com um silêncio que é um antídoto ao barulho que nos rodeia. Ela nos procura um estado prazeroso semelhante ao da meditação e nos traz os mesmos benefícios que o relaxamento profundo. Ao abrir um livro conquistamos novas perspectivas, pois a ficção divide com a vida sua essência ambígua e multifacetada. Uma vez que só podemos ler um número limitado de títulos, o que procuramos? Obras que reafirmem nossas crenças, ou façam com que essas balancem? Para Kafka era muito claro, só deveríamos nos adentrar nas obras que incomodam: “Um livro precisa ser um machado que abre um buraco no mar gelado de nosso interior”.

Marcelo Centenaro

 Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoiévski, não é uma obra fácil. É curta, pouco mais de cem páginas. Mas é muito densa. O narrador sem nome, o Homem do Subsolo, é um personagem profundamente atormentado. Muda de ideia o tempo todo, corrige o que acabou de dizer, confessa que mentiu.


Na primeira parte, falando do seu tempo presente, nos conta que tem quarenta anos, está doente, abandonou um cargo público humilde porque recebeu uma herança modesta e vive isolado da sociedade. Conhecemos sua visão de mundo. É culto, instruído, inteligente. Tem um profundo desprezo pelas pessoas e pela sociedade, mas tem um desprezo maior por si mesmo.


Na segunda parte, narra três histórias que aconteceram com ele catorze anos antes, e que ilustram suas dificuldades em se relacionar com as pessoas.


Temos vontade de voltar a São Petersburgo de 1860 e socar o Homem do Subsolo. Como ele pode ser tão idiota? Como pode dar tanto valor ao que é irrelevante e prejudicar tanto a si mesmo e aos outros?


Porém, não temos como discordar de parte das ideias que ele defende. E defende de maneira especialmente dolorosa para si mesmo. 


Fábio Hernandez

 Olho para minha estante e apanho um livro antigo.

É um livro de um escritor barato, e está no meio de romances de escritores nada baratos. Dostoievski e Tolstoi, Balzac e Flaubert, Hemingway e Fitzgerald, Machado e Eça, Roth e Updike, Chandler e Hammett, Garcia Marques e Vargas Llosa.
É um livro simples, banal, tolo.
Mas eu o amo, e ele sobrevive às limpezas periódicas de livros em minha biblioteca. O nome é Verão de 42, escrito por um certo Herman Raucher, e inspirou um filme tão bonito quanto o livro, e isso é raro.
A trilha sonora, um piano lírico, melodioso, lento, triste, é uma das mais belas do cinema.
Um cara retorna ao lugar em que passou o verão de sua vida, uma praia.
Essa a história.
O narrador lembra aqueles dias ensolarados, aqueles tempos de descobertas e transformação que a gente vive apenas aos quinze anos. Vou direto ao final. Quero reler as últimas linhas ainda uma vez.

Victor Barcellos

 Muitos são os motivos que fazem de Os Irmãos Karamázov (1879), romance de Fiódor Dostoiévski, um dos ícones da literatura mundial. Nessa obra confluem os principais temas da humanidade, sob a ótica das mais diversas áreas (filosofia, psicologia, teologia, direito, etc.). Sua narrativa gira em torno de uma família russa de tipos bastante particulares que passa por uma série de problemas, e aqueles que se aventuram a lê-­la certamente se reconhecerão em alguns deles.



Como em todo escrito de caráter universal, o livro está repleto de aforismos. Isso porque sintetizam o universo em algumas poucas palavras, e por serem de pequeno calibre, penetram fácil e repentinamente a alma. Um para o qual chamo a atenção é o expresso por Dimitri Karamázov: “somos todos culpados de tudo”. A primeira reação diante dessa poderosa afirmação é a mesma de sempre que somos acusados de algo: procurar argumentos para a defesa. “Como assim? Todo mundo? Culpado por tudo? Mas eu não sou culpado por isso, nem por isso, nem isso … Como poderia?”. Mas se a segunda reação é a de uma abertura para essa possibilidade, veremos quanta verdade (“seremos capazes de suportar?” perguntaria Nietzsche) há nessas palavras.

Hélio Gurovitz

     “O bom senso”, escreveu René Descartes na abertura do Discurso do método , “é a coisa mais bem compartilhada do mundo.” Mal poderia ele prever o que se compartilha hoje nas correntes de WhatsApp, fios do Twitter, comentários de Facebook ou grupos do Telegram. Parece haver de tudo nas redes sociais, menos um pingo de bom senso. Só que todos os que “compartilham” suas opiniões, ideias e — suspiro… — memes julgam tê-lo. Ninguém acha que tem pouco. “O que quer que alguém acredite ser questão de bom senso, acredita com certeza absoluta. Só fica espantado com o fato de que outros discordem”, diz o sociólogo canadense-australiano Duncan J. Watts em Tudo é óbvio — Desde que você saiba a resposta .

      O livro analisa as peças que o senso comum nos prega. Instintivo, natural, prático, o bom senso é essencial nas decisões cotidianas individuais: que roupa vestir, como pegar o metrô, quando obedecer às regras, quando ignorá-las e coisas do tipo. Mas se torna um péssimo guia para as decisões de natureza coletiva, relativas a política, Direito, economia ou cultura. “Sempre que discutimos sobre política, economia ou a lei, usamos implicitamente nosso bom senso para extrair conclusões sobre como a sociedade será afetada”, afirma Watts. “Em nenhum desses casos raciocinamos sobre como devemos nos comportar, mas sobre como os outros se comportaram — ou se comportarão — em circunstâncias sobre as quais temos no máximo compreensão parcial.” Praticamente todas as discussões nas redes sociais padecem dessa deficiência: das cadeirinhas infantis à posse de armas, da homofobia às vacinas, da reforma da Previdência às privatizações. “O que parece razoável a um pode parecer curioso, bizarro, até repugnante ao outro.” 

      Formado em física, doutor em sociologia e hoje pesquisador na Microsoft, Watts ficou conhecido pelo pioneirismo no estudo da disseminação de informações nas redes sociais (em sua tese, explorou a ideia célebre dos seis graus de separação entre duas pessoas). Com base em suas pesquisas, questiona o mito dos “influenciadores” digitais e analisa as razões reais do sucesso da Mona Lisa ou das músicas que chegam ao topo das paradas. Mostra quanto a sorte e as circunstâncias podem ser mais relevantes que conceitos difusos como talento, genialidade ou “pessoas especiais”. Mais que tudo, Watts faz um alerta para que ninguém julgue o próprio bom senso algo especial. É comum, diz ele, amigos e colegas aceitarem seu argumento no sentido abstrato, mas o rejeitarem quando aplicado às opiniões que abraçam com força. “É como se os erros do bom senso fossem apenas dos outros, não deles próprios.”

      O recado de Watts não poderia ser mais sensato: não é porque alguém discorda que é necessariamente idiota, canalha ou, para empregar o lugar-comum, “desonesto intelectualmente”. E não há nenhuma vergonha em mudar de opinião. Questão de bom senso, não parece?