Albert Camus

     O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas desprevenidas. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar muito, seria idiota! E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre.

      Oran é uma cidade aparentemente moderna. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois. Também isso não é original. Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.

      Foi mais ou menos nessa época que os nossos concidadãos começaram a se inquietar, pois as fábricas e os depósitos vomitaram centenas de cadáveres de ratos. Em alguns casos, foi necessário acabar de matar os bichos, pois sua agonia era demasiado longa. Mas desde os bairros, exteriores até o centro da cidade, por toda parte onde os nossos concidadãos se reuniam, os ratos esperavam em montes, nas lixeiras ou junto às sarjetas, em longas filas.

      A imprensa da tarde ocupou-se do caso a partir desse dia e perguntou se a municipalidade se propunha ou não a agir e que medidas de urgência tencionava adotar para proteger os seus munícipes dessa repugnante invasão. A municipalidade nada se tinha proposto e nada previra, mas começou por reunir-se em conselho para deliberar. Foi dada a ordem ao serviço de desratização para recolher os ratos mortos. Em seguida, dois carros do serviço de desratização deveriam transportar os animais até o forno de incineração de lixo a fim de serem queimados. Mas, os dias se seguiram, a situação agravou-se. O número de roedores apanhados ia crescendo e a coleta era a cada manhã mais abundante. A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrerem em grupos.

      Dos porões, das adegas, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres humanos. À noite, nos corredores e nas ruelas, ouviam-se distintamente seus guinchos de agonia. De manhã, nos subúrbios, encontravam-se estendidos nas sarjetas com uma pequena flor de sangue nos focinhos pontiagudos; uns, inchados e pútridos; outros, rígidos e com bigodes ainda eriçados. Na própria cidade, eram encontrados em pequenos montes nos patamares ou nos pátios. Vinham, também, morrer isoladamente nos vestíbulos das repartições, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés.

      Nossos concidadãos, estupefatos, encontravam-nos nos locais mais frequentados das cidades. Passavam de mão em mão diversas profecias atribuídas a magos ou a santos da Igreja Católica. Editores da cidade viram rapidamente o proveito que poderiam tirar desta mania e difundiram em largas edições os textos que circulavam. Quando a própria história já não tinha profecias, encomendaram-nas a jornalistas, que, ao menos neste ponto, se mostraram tão competentes como os seus colegas de séculos passados. Nostradamus e Santa Odília foram, assim, consultados quotidianamente, e sempre com proveito. O que, de resto se tornava comum a todas as profecias era o facto de elas serem, finalmente, tranquilizadoras. Só a peste o não era. Estas superstições substituíam, pois, para os nossos concidadãos a religião.

 *
      Teriam nossos concidadãos, pelo menos os que mais haviam sofrido, se habituado à situação? Não seria inteiramente justa essa afirmação. Seria mais exato afirmar que, tanto moral quanto fisicamente, sofriam. No começo da peste, lembravam-se nitidamente do ente que haviam perdido e sentiam saudade. Mas, se se lembravam nitidamente do rosto amado, do seu riso, de determinado dia que agora reconheciam ter sido feliz, tinham dificuldade de imaginar o que o outro podia estar fazendo no próprio momento em que o evocavam e em lugares de agora em diante tão longínquos. Em suma, nesse momento, tinham memória, mas uma imaginação insuficiente. Na segunda fase da peste, perderam também a memória. Não que tivessem esquecido esse rosto, mas, o que vem a dar no mesmo, ele perdera a carne, já não o sentiam no interior de si próprios.

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     Pela primeira vez, os separados não tinham repugnância em falar dos ausentes, em usar a linguagem de todos, em examinar sua separação sob o mesmo enfoque que as estatísticas da epidemia. Enquanto, até então, tinham subtraído ferozmente seu sofrimento à desgraça coletiva, aceitavam agora a confusão. Sem memórias e sem esperança, instalavam-se no presente. Na verdade, tudo se tornava presente para eles. A peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes.

 *
      Durante alguns minutos, avançaram com a mesma cadência e o mesmo vigor, solitários, longe do mundo, libertados enfim da cidade e da peste. Rieux foi o primeiro a parar e voltaram lentamente, a não ser num momento em que entraram numa corrente gelada sem nada dizerem, ambos aceleraram os movimentos fustigados por esta surpresa do mar. Novamente vestidos, partir, sem terem pronunciado uma palavra. Mas entendiam-se, era suave a lembrança dessa noite. Quando viram de longe a sentinela da peste, Rieux sabia que Tarrou dizia para si próprio, como ele, que a doença acabava de esquecê-los, que isso era bom, e que agora era preciso recomeçar. Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que esta multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a Peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.

 Trechos do livro A peste, selecionados por José  Aléssio