Este poema não tem começo
Márcio Moreira
Olinda Beja
Na minha terra há um rio
que nunca vai ter ao martrago-o eu dentro do peito
e o meu corpo é o seu leito
onde ele se pode espraiar
na minha terra há um pranto
de uma mãe que o não secou
escorre nas minhas veias
como o mar por entre as areias
que o oceano afundou
na minha terra há um porto
com barcos por atracar
as amarras trago-as eu
no destino que me deu
outro porto p'ra embarcar
na minha terra há um mundo
diferente deste onde estou
mas não o trago comigo
ficou para meu castigo
no mundo em que não estou
*****
Tenho uma ilha por dentro de mim
cheia de corais e praias sem fim
que chora e repete na longa distância
os dias e as horas que me deu na infância
tenho as canoas correndo na alma
e bebo em orgias vinho de palma
na roça à noite varrendo o terreiro
eu falo e discuto com piadô feiticeiro
santo é o seu nome e santa é a gente
que as ilhas povoam bendito o seu ventre
tenho uma ilha por dentro de mim
cheia de floresta de mato capim
que chora e repete no porto de abrigo
os dias e as horas que eu trouxe comigo
Fernando Pessoa
A aranha do meu destino
Faz teias de eu não pensar.Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir.
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte.
Charles Bukowski
Esperando pela morte
como um gatoque vai pular
na cama
sinto muita pena de
minha mulher
ela vai ver este
corpo
rijo e
branco
vai sacudi-lo talvez
sacudi-lo de novo:
hank!
e hank não vai responder
não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher
deixada sozinha com este monte
de coisa
nenhuma.
no entanto
eu quero que ela
saiba
que dormir todas as noites
a seu lado
e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas
e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de
dizer
podem agora ser ditas:
eu te
amo.
Maria do Rosário Pedreira
Mãe, eu quero ir-me embora – a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começarama crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram –
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.
Mãe, eu quero ir-me embora – os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim – tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.
Mãe, eu quero ir-me embora – nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique –
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.
Mãe, eu vou-me embora – esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua – a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste um dia que chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.
Fernando Pessoa
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vividaE outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Miguel Torga
Não são pepitas de oiro que procuro.
Oiro dentro de mim, terra singela!Busco apenas aquela
Universal riqueza
Do homem que revolve a solidão:
O tesoiro sagrado
De nenhuma certeza,
Soterrado
Por mil certezas de aluvião.
Cavo,
Lavo,
Peneiro,
Mas só quero a fortuna
De me encontrar.
Poeta antes dos versos
E sede antes da fonte.
Puro como um deserto.
Inteiramente nu e descoberto.
Antônio Cícero
Aprendi desde criança
que é melhor me calare dançar conforme a dança
do que jamais ousar
mas às vezes pressinto
que não me enquadro na lei:
minto sobre o que sinto
e esqueço tudo o que sei.
Só comigo ouso lutar:
sem me poder vencer,
tento afogar no mar
o fogo em que quero arder.
De dia caio minh’alma.
Só à noite caio em mim:
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.
Murilo Mendes
Senhor do mundo,
cada vez que ressuscitas um homem, me destruo a mim mesmo.Enquanto o demônio te tenta no deserto
eu sonho com os corpos que a terra criou.
Enquanto passas fome e sede quarenta dias
os meus sentidos se desalteram.
Cada vez que cais ao peso da tua cruz
eu caio com uma mulher de última classe.
Enquanto te multiplicas na humanidade
não saio dos limites da minha pessoa.
Depois da morte voltas pra absolver o justo e o pecador,
eu antes da morte já condenei o pecador, o justo e eu mesmo.
Senhor do mundo,
me tira de mim pra que eu possa olhar os outros e eu mesmo.
Tomás Antônio Gonzaga
Eu, Marília, não sou nenhum vaqueiro,
Fui honrado pastor da tua aldeia;Vestia finas lãs, e tinha sempre
A minha choça do preciso cheia.
Tiraram-me o casal e o manso gado,
Nem tenho, a que me encoste, um só cajado.
Já não cinjo de louro a minha testa;
Nem sonoras canções o Deus me inspira:
Ah! que nem me resta
Uma já quebrada,
Mal sonora lira!
Minha bela Marília, tudo passa;
A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos males a ventura,
Vem depois dos prazeres a desgraça.
O ser herói, Marília, não consiste
Em queimar os impérios: move a guerra,
Espalha o sangue humano,
E despovoa a terra
Também o tirano.
Consiste o ser herói em viver justo:
E tanto pode ser herói o pobre,
Como o maior Augusto.
Do livro Marília de Dirceu
edição: José Aléssio
Arnaldo Antunes
eu tenho uma coleção de esquecimentos
e apenas duas mãos pra ver o mundo
meu dia passa inteiro num segundo
mas nada abafa a voz dos pensamentos
nem frontal e nem melatonina
eu tenho as saudades de um soldado
do que haveria de ser o meu passado
de tudo que escapou da minha sina
desculpas, culpas, lapsos de sinapses
impregnam minha corrente sanguínea
e sigo apassivando a carne ígnea
e aplainando os vértices dos ápices
eu sou o super-homem submisso
às rotas da rotina e ao tempo escasso
enquanto esqueço do próximo passo
anoto um outro novo compromisso
queria estar a sós comigo mesmo
e ter a eternidade toda em torno
desfalecer no fogo desse forno
até me desfazer como um torresmo
Ferreira Gullar
Onde começo, onde acabo,
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?
Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.
Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.
Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
Aleksandr Púchkin
Dom inútil, dom fortuito,
por que a vida me foi dada?
E o destino, com que intuito?a condena a um fim: o nada?
Que poder hostil, do pó,
suscitou minha alma ardente
e lhe deu paixão, mas só
dúvida à minha mente?
Sigo a esmo de ermo peito
mente ociosa e, sem saída,
pesaroso, eu me sujeito
ao maçante som da vida.
Bruna Lombardi
Quando me perdi de mim,
eu, assombrada
com o que acontecia à minha volta,
tentei achar a porta da morada
de um lugar que já não estava mais
onde o deixei.
Já não sabia mais qual o caminho
onde achar um mapa ou estrela que orientasse
se a voz de Deus já não chegava nesse abismo
se já não havia mais quem me escutasse.
Se eu soubesse que cada pecado que cometi
e quando, mesmo doendo, eu dei a outra face,
cada batalha que enfrentei
e cada vez que deixei que me cortassem,
que tudo isso foi a mistura necessária
pra que eu aos poucos me tornasse
a purificação desse estado de coisas
que agora me transforma no que sou.
Não existe mais procura do caminho.
O caminho é apenas onde estou.
José Saramago
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.
Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.
Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.
Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo
Manuel Antônio Pina
Todas as palavras
As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo
e se foram levando o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.
Cora Coralina
Não sei…
se a vida é curtaou longa demais para nós.
Mas sei que nada do que vivemos
tem sentido,
se não tocarmos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser:
colo que acolhe,
braço que envolve,
palavra que conforta,
silêncio que respeita,
alegria que contagia,
lágrima que corre,
olhar que sacia,
amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo:
é o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
não seja nem curta,
nem longa demais,
mas que seja intensa,
verdadeira e pura…
enquanto durar.
Jorge Luís Borges
Não ficará na noite uma estrela.
Não ficará a noite.Morrerei e comigo a suma
Do intolerável universo.
Apagarei as pirâmides, as medalhas,
Os continentes e as caras.
Apagarei a acumulação do passado.
Farei pó a história, pó o pó.
Estou olhando o último poente.
Ouço o último pássaro.
Lego o nada a ninguém.
Florbela Espanca
Não acredito em nada. As minhas crenças
Voaram como voa a pomba mansa,Pelo azul do ar. E assim fugiram
As minhas doces crenças de criança.
Fiquei então sem fé; e a toda gente
Eu digo sempre, embora magoada:
Não acredito em Deus e a Virgem Santa
É uma ilusão apenas e mais nada!
Cecília Meireles
E aqui estou, cantando.
Um poeta é sempre irmão do vento e da água:deixa seu ritmo por onde passa.
Venho de longe e vou para longe:
procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada.
Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.
Pois aqui estou, cantando.
Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?