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Sérgio Augusto

 Isto não é um diário, mas poderia ser. Então recomeço: domingo, 30 de abril, final de tarde. Ao chegar à pág. 282 de A Oeste do Éden, sou surpreendido por um furo do site do Daily News: Jean Stein, a autora do livro, acabara de se suicidar. Autor morto a gente costuma ler até mais do que os vivos, mas naquelas circunstâncias e com o corpo ainda no necrotério nunca me havia acontecido. Pelos meus cálculos, fazia apenas cinco horas que Jean se jogara do 15.º andar do prédio em que morava, na Gracie Square, em Manhattan.


Foi uma experiência bizarra, perturbadora, que levei um dia para metabolizar. Noves fora o fato de ter gostado imensamente do livro e admirar a autora, ela se matara como Mary Jennifer, a protagonista do penúltimo capítulo de A Oeste do Éden, justo o que estava a ler na tarde de domingo. Em maio de 1976, a jovem e bipolar filha da atriz Jennifer Jones atirou-se do 22.º andar de um prédio de Westwood, em Los Angeles. Coincidência demais.

Mesmo que eu estivesse lendo O Velho e o Mar em 2 de julho de 1961, quando Hemingway estourou os miolos, o impacto teria sido diferente. Suicídios perpassavam as narrativas de Adeus às Armas e Por Quem os Sinos Dobram, mas Santiago, o pescador de O Velho e o Mar, não dava cabo da própria vida. Além disso, fazia então um bom tempo que não abria um livro de Hemingway, interregno só interrompido quando lançaram o póstumo Paris É Uma Festa.
Se eu estivesse lendo Sylvia Plath no dia (11 de fevereiro de 1963) em que ela vedou as portas e ligou o gás da cozinha, bem, naquela época a desconhecia por completo. Conheci e admirava Ana Cristina César, mas em 29 de outubro de 1983, quando ela, à maneira de Jean Stein, atirou-se do alto de um prédio em Copacabana, eu estava viajando, sem um escasso verso dela na bagagem.


David Foster Wallace renderia comparação mais conveniente. Eu podia estar lendo Infinite Jester em 12 de setembro de 2008 (a tradução brasileira, Graça Infinita, épica façanha de Caetano W. Galindo, ainda não existia), ou seja, no dia em que o autor se enforcou no quintal de sua casa e sem dúvida teria ficado impressionado se já tivesse passado ou estivesse passando pela pág. 227, onde a personagem Koelle, vê-se tentada a enforcar-se com uma corda.
Suicídios são contagiantes, pesquisas confiáveis o demonstram. Werther foi um vírus espiritual, no século 18. Ao ser informada do suicídio de Sylvia Plath, a também poeta Anne Sexton ficou paralisada e balbuciou: “Eu deveria ter morrido no lugar dela” (tradução livre de “That death was mine”). Onze anos depois, envolta num casaco de pele herdado da mãe, Sexton trancou-se na garagem da casa, ligou a ignição do carro e enfim consumou o ato que outras vezes resultara infrutífero.

Como todos os citados, Jean Stein sofria de depressão em alto grau. Não era uma imagem woolfiana a que ela projetava publicamente. Jamais a imaginaria enchendo de pedras os bolsos do casaco e deixando-se arrastar pelas águas do Hudson ou do East River, muito menos se jogando de um edifício, uma das formas mais espalhafatosas de pôr termo à vida. Seu livro - história oral de cinco clãs que enriqueceram em Los Angeles e consolidaram a mitogonia hollywoodiana - é um vasto cemitério de canalhas, desajustados, deprimidos e suicidas, a maior parte criada em berço de ouro. Quem disse que dinheiro não traz infelicidade?

Jules C. Stein, pai de Jean, morreu podre de rico. Não como oftalmologista, seu métier inicial, mas como fundador e coproprietário da monopolista MCA (Music Corporation of America). Seu sócio, Lew Wasserman, vivia metido com gângsteres e enfartou com gritos histéricos um de seus subordinados na MCA. Não bastasse, foi quem mais estimulou Ronald Reagan a trocar o show business pela política.

Os Steins viviam numa mansão cercada por muros e jardins em Beverly Hills, que tinha nome romântico, Misty Mountain, e hospedou muitas histórias glamourosas e outras quase grotescas, frequentemente estreladas pelos pileques de Doris Stein, pelo descrito, uma bruaca, muito ligada à odiosa mãe de Gore Vidal, outra tremenda pinguça. No funeral do patriarca da família, Doris barrou a secretária e amante do finado, que teve de assistir à cerimônia trepada numa árvore, como a faulkneriana Caddy Compson no começo de O Som e a Fúria.

“Quero morrer num jardim entre muros”, confessa Jean no último capítulo de seu livro, aludindo, obviamente, a Misty Mountain, para ela, o éden sobre a Terra. Tarde demais; seu destino era a selva de concreto. Sua alma cosmopolita levou-a a Wellesley, Sorbonne, ao jornalismo cultural (coeditou Paris Review com George Plimpton e Grand Street sozinha), teve um caso com William Faulkner, que tinha idade para ser seu pai. Reinava em Nova York como uma das maiores anfitriãs de intelectuais e artistas da Costa Leste. Foi numa de suas badaladíssimas festas que Gore Vidal e Norman Mailer se engalfinharam verbalmente em público pela primeira vez.

Imaginava-a uma Nora Ephron mais séria ou uma Renata Adler mais leve, não uma angustiada sobrevivente - de que mundo, exatamente, não sei, mas que ele, se não acabou, está no finzinho, como o nosso.

Marcelo Rubens Paiva

  Ninguém mais conversa no metrô. Ninguém mais olha o vazio, o mapa das linhas, os anúncios, as luzes passando em sentido contrário, a própria imagem refletida nas janelas, quem entra, quem sai,  quem chora, quem dorme, quem se dirige a uma manifestação de protesto, ou de apoio, por alguém que sempre quis, e que nunca tomou a iniciativa, quem acaba de conseguir um emprego, quem não desce em nenhuma estação, e quer apenas dar um tempo, viver sem sentir a vida, percorrer túneis subterrâneos de uma grande metrópole, em que, apesar da multidão, se sente sozinho.

     Ninguém troca ideias, opiniões divergentes, ninguém debate, é convencido de algo, muda de opinião. A bolha que nos cerca nos protege. É como um escudo contra o que nos agride. A cidade nos agride. O ódio nos agride. Todos nela nos agridem. Suas vozes incomodam.

     Preferimos a música preferida da lista previamente selecionada que sai dos meus fones de ouvido conectados por um cabo ao meu universo pessoal, em que sou Deus, em que decido o que ler e ouvir, o que ver e curtir, o que assistir e ignorar, graças à opção “bloqueio”, à opção “excluir”, à opção “apagar perfil”, “colocar em modo avião”, “não receber notificações”.

     Há uns anos, não pegava celular no metrô. Os passageiros conversavam, paqueravam, miravam o vazio, redescobriam estações no mapa das linhas, checavam os cabelos na imagem refletida, quem entrava, saía, vestia o que, era fã de Ramones, Pink Floyd, Metallica, Batman, Jack Daniel’s, quem estava bem, feliz, chorava, dormia, quem, pelo perfume, banho tomado, roupa bonita, estava a caminho de um encontro secreto, fora beijada, por alguém surpreendente, inexplicável, paixão que nasceu do fundo da alma, quem descobriu que não ama mais, descobriu que estava grávida e não consegue mais dormir, tensa, quem acabou de perder um emprego, a estação, o sentido de viver, porque se sente sozinho, apesar da multidão nas estações.

     Trocavam-se ideias, opiniões, debatia-se, mudavam as convicções de alguém, apresentavam outros pontos de vista, experiências e erros da história que se repetem. A bolha é nosso mundo agora. E o que tem de tão urgente nos celulares, que não era na década anterior? O que é inadiável?
A bolha em si, e nela que se quer estar: protegido e isolado. O mundo é muito louco, tem muito louco por aí. E boa parte, quando chega à sua estação, continua nela, caminha olhando ou falando para seu universo pessoal. Haverá um dia em que as pessoas voltarão a interagir? O mundo corre perigo.

     Pelos grandes pilares da rede social (Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp), você recebe notícias de quem quer que lhe dê notícias, não de quem lhe desagrada, discorda, coloca em dúvida, incomoda, atrapalha a lógica da ética de vida que você demorou para adquirir.
A bolha foi criada por você e pela matemática. As redes registram o que você gosta. Deixa aquilo que você não gosta em segundo plano e o bombardeia de informações apenas de quem ou o que você gosta. São os misteriosos algoritmos, a lógica da rede.

Luiz Fernando Veríssimo

 Napoleão Bonaparte era um escritor frustrado. Tinha escrito contos e poemas na juventude, escreveu muito sobre política e estratégia militar e sonhava em escrever um grande romance. Acreditava-se, mesmo, que Napoleão considerava a literatura sua verdadeira vocação, e que fora a sua incapacidade de escrever um grande romance e conquistar uma reputação literária que o levara a escolher uma alternativa menor, conquistar o mundo.

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Estive pensando no que isso significa para os escritores de hoje e daqui. Em primeiro lugar, deve levá-los a pensar na enorme importância que tinha a literatura nos séculos 18 e 19, e não apenas na França, onde, anos depois de Napoleão Bonaparte, um Vitor Hugo empolgaria multidões e faria História não com batalhões e canhões, mas com a força da palavra escrita, e não em conclamações e discursos, mas, muitas vezes, na forma de ficção.
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Não sei se devemos invejar uma época em que reputações literárias e reputações guerreiras se equivaliam dessa maneira, e em que até a imaginação tinha tanto poder. Mas acho que podemos invejar, pelo menos um pouco, o que a literatura tinha então e parece ter perdido: relevância. Se Napoleão pensava que podia ser tão relevante escrevendo romances quanto comandando exércitos, e se um Vitor Hugo podia morrer como um dos homens mais relevantes do seu tempo sem nunca ter trocado a palavra e a imaginação por armas, então uma pergunta que nenhum escritor daquele tempo se fazia é essa que hoje fazem o tempo todo: para o que serve a literatura, de que adiantam as palavras, onde está a nossa relevância?
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Depois que a literatura deixou de ser uma opção tão respeitável e vigorosa para um homem de ação quanto a conquista militar ou política – ou seja, depois que virou uma opção para generais e políticos aposentados, mais um consolo para a perda de poder do que poder – ela nunca mais recuperou o seu pé de igualdade. Ou, digamos assim, sua respeitabilidade, na medida em que qualquer poder, por armas ou por palavras, pode ser respeitável. Hoje, a literatura só participa da política, do poder e da História como subalterna e como instrumento. Ou como cúmplice.
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Acho que todos nós que escrevemos no Brasil, principalmente os que têm um espaço na imprensa para fazer sua pequena literatura ou simplesmente dar seus palpites, temos essa preocupação. Nunca sabemos exatamente do que estamos sendo cúmplices. Podemos estar servindo de instrumentos de alguma agenda de poder sem saber, podemos estar contribuindo, com nossa indignação ou nossa gozação, para legitimar alguma estratégia secreta, sem querer. Ou podemos simplesmente estar colaborando com a grande desconversa nacional, a que distrai a atenção enquanto a verdadeira história do País acontece em outra parte, longe dos nossos olhos e indiferente à nossa crítica. Não somos relevantes, ou só somos relevantes quando somos cúmplices, conscientes ou inconscientes.
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Mas comecei falando da frustração literária de Napoleão Bonaparte e não toquei nas implicações mais importantes do fato, pelo menos para o nosso amor-próprio. Se Napoleão só foi Napoleão porque não conseguiu ser escritor, então temos esta justificativa pronta para o nosso estranho ofício: cada escritor a mais no mundo corresponde a um Napoleão a menos. A literatura serve, ao menos, para isso: poupar o mundo de mais Napoleões. Mas existe a contrapartida: muitos Napoleões soltos pelo mundo, hoje, fariam melhor se tivessem escrito os romances que queriam. O mundo, e certamente o Brasil, seria outro se alguns Napoleões tivessem ficado com a literatura e esquecido o poder. Não me peçam para citar nomes.

Rubem Alves

 Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia.Eu me explico.


     Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski. E logo me assustei. Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se.Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakoviski suicidou-se.

      Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.Mas será que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que as ideias comportam-se bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado; nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, basta fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme) ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, a coragem de pensar o que nunca pensou.

      Pensar é uma coisa muito perigosa… Não, saúde mental elas não tinham… Eram lúcidas demais para isso.
     Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idosos de gravata.Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental.Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego numa empresa.

     Por outro lado, nunca ouvir falar de político que tivesse depressão.
 Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas. Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos.
Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interação de duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente “equipamento duro”, e a outra denomina-se software, “equipamento macio”. Hardware é constituído por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito. O software é constituído por entidades “espirituais” – símbolos que formam os programas e são gravados nos disquetes.

Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos do cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo “espirituais”, sendo que o programa mais importante é a linguagem.

     Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software.
Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou. Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fenda.

     Porque o software é feito de símbolos e, somente símbolos, podem entrar dentro dele.Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos de Drummond e o corpo fica excitado. Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e os acessórios, o hardware, tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e se comover. Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta e se arrebenta de emoção!

      Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei no princípio: A música que saia de seu software era tão bonita que seu hardware não suportou…

     Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de oferecer uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, “saúde mental” até o fim dos seus dias. Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e comoventes. A beleza é perigosa para o hardware. Cuidado com a música… Brahms, Mahler, Wagner, Bach são especialmente contra-indicados.

      Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Tranquilize-se há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento.  Seguindo essa receita você terá uma vida tranquila, embora banal. Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já terá se esquecido de como eles eram.

Juremir Machado da Silva

 Saio cada vez menos. Não bebo álcool faz alguns anos. Fico perdido nas conversas. Creio que já passei da idade de fazer novos amigos. Cada vez mais eu me apego aos antigos. Chego a cavoucar na internet nomes de amigos de infância. Quando os localizo, desisto de ir ao encontro deles. Fico feliz em saber que estão por aí. Outro dia, procurei o Cáqui. Achei-o depois de muita luta. Mora em Figueira Aléssio. Não o surpreenderia com a chatice de um telefonema depois de 45 anos:

– Alô…
– Aqui é o Juremir…
– Que Juremir?!!
– Eu tinha uma bola amarela…
A amizade é estranha. Ela se agarra a um elo invisível. Sou um sujeito bizarro. A presença de um amigo vale para mim mais do que mil palavras. Posso ficar em silêncio ouvindo a respiração do tempo compartilhado. Não sei se tenho muito a dizer. Pode ser que aos meus melhores amigos eu já tenha dito tudo o que podia.
 A amizade dispensa os fatos, as notícias, o futebol, as doenças, os inventários, as novidades e as confissões.  A verdadeira amizade é uma espécie de catedral onde rezam em silêncio aqueles que se comunicam por sentimentos. E os amigos que partiram? Quando faço a lista, sinto o peso do tempo e a alegria do vivido:
– Eu tive amigos – exclamo para mim e me sinto feliz.
Eu tenho amigos, completo. No ônibus, encontrei uma amiga. Não nos víamos há uns 10 anos. Por trás da sua nova imagem havia a velha fotografia. Por trás dos cabelos curtos, os longos cabelos de antes.
– Passamos – ela disse.
– Juntos – eu falei.
Ela desceu na sua parada. Eu segui no meu banco. Sorrindo. Não sou de expansões. Uma velha amiga me cobra por abraçar e beijar pouco. Na catedral da solidão bem vivida olho meus amigos nos olhos e basta.

edição: José Aléssio

Alejandro Zambro

 Caminhei ontem à noite durante horas. Era como se quisesse me perder por alguma rua nova. Me perder absoluta e alegremente. Mas há momentos em que não podemos, não sabemos nos perder. Ainda que tomemos sempre as direções erradas. Ainda que percamos todos pontos de referência. Ainda que se faça tarde e sintamos o peso do amanhecer enquanto avançamos. Há temporadas em que, por mais que tentemos, descobrimos que não sabemos, que não podemos nos perder. E talvez tenhamos saudade do tempo em que podíamos nos perder. O tempo em que todas as ruas eram novas.


          * * * * *

Morei em pensões ou quartos pequenos e trabalhei em qualquer coisa enquanto terminava a faculdade. E quando terminei a faculdade continuei trabalhando em qualquer coisa, porque estudei literatura, que é o que estudam as pessoas que terminam trabalhando em qualquer coisa.

          * * * * *

Aprender a contar sua história como se não doesse. Mas é uma armadilha colocar a coisa desse modo, como se o processo terminasse um dia.


Rubem Braga

      Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria; e então eu sinto uma saudade muito grande, e penso em vocês devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom quanto nos tempos de nossa meninice lá pras bandas do Sul.

     Ah, que vontade de escrever bobagens tipo redação escolar, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto.

     Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.

     Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas eu sei que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em todos vocês, pensando teimosamente, docemente em todos vocês.


edição: José Aléssio

Paulo Mendes Campos

 Agora, que chegaste à idade avançada de mais de dez  anos,  eu peço que leias o livro Alice no País das Maravilhas. Este livro é doido. Isto é: o sentido dele está em ti.


 Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.

Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?” Essa indagação perplexa é lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta.

A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!” O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada ou vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

Somos todos tão bobos. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.

A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia. Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: “Gostarias de gato se fosses eu?”

Os homens vivem apostando corrida. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! mas quem ganhou?” É bobice, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu.

Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar.

E escuta a parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece.  O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo.

 E como tomar o pequeno por grande e grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom-humor.

 Toda a pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas.

Gilberto Amendola

  Estou dividindo apartamento com uma lagartixa. Embora não ajude no aluguel, sua presença não é um estorvo. Discreta, aparece com certa regularidade para me dar um salve e perguntar se estou bem. Drica, a lagartixa, sabe que essa é uma pergunta retórica. Na verdade, só quer puxar conversa e ouvir umas amenidades. 

No momento, não as tenho, as amenidades. Costumo colhê-las fora de casa, em passeios que não faço mais. Ainda assim, ela me ouve com generosidade. Algo raro, imagino. Eu mesmo nunca tive essa qualidade – embora saiba emular esse personagem (do bom ouvinte e interessado). 

Poucas coisas me interessam. Mas Drica, a lagartixa, é diferente. Ela é curiosa e se importa. Ela se interessa por tudo. Tudo, tudo parece preenchê-la de alguma energia vital.  As vantagens de Drica são palpáveis. Ela passeia pelo meu apartamento como se cada cômodo fosse um continente. Minha sala é Paris. Minha cozinha Nova York. A vida inteira dessa minha amiga lagartixa-doméstica-tropical cabe aqui dentro. 

Ela é sensível aos meus desassossegos. Aos murros na mesa, às ligações sem resposta, aos palavrões atirados contra o infinito. Ela é sensível ao meu cansaço e aos meus fracassos solitários.  Mas, quando quero desabar, Drica, a lagartixa, me olha com seus olhinhos de esperança e me acalma. São uns olhinhos de quem enxerga melhor na escuridão. Uma coisa comovente.

Drica, a lagartixa, acompanha meu home office. Com ela, tiro dúvidas gramaticais, comento os absurdos do governo, assisto Big Brother e algumas séries no serviço de streaming.  Drica, a lagartixa, prefere os filmes leves. É otimista. A crença dela em finais felizes é quase um poema. 

Tenho medo de esmagar minha amiga com meus pés de chumbo, com minha ansiedade e pessimismo. Mas, Drica, a lagartixa, entende meus limites. Não é de dar bobeira. Não fica ao alcance dos meus desastres. Estou olhando para ela agora. No momento em que escrevo e deleto, escrevo e deleto, escrevo e deleto. Mais deleto do que escrevo. Às vezes, são apenas letras repetidas e enfileiradas. Faço de propósito. Pelo prazer em usar o backspace. Tenho um romance de apagamentos. 

Drica, a lagartixa, me entende. Eu acho que entende. Certeza que sim. Do alto, na parede da minha sala, ela me manda uma mensagem: você não precisa sair de casa para se encontrar com Deus. 

Érica Gerli

      Era uma casa grande, alta, feita de madeira cuidadosamente beneficiada. O exterior era de um verde musgo que completava as árvores do lugar, umas frutíferas ,outras de sombra. Os móveis eram de madeira, muito bem talhados e acabados, nunca me esqueci do pequeno guarda-louça no canto da parede com portas de vidro que exibiam lindas porcelanas. Não sei ao certo mas acho que os móveis eram feitos por membros da família. Quando a gente chegava pela estradinha de terra, sobre o portão sempre havia ramadas de flores em forma de arco, creio que às vezes as plantas eram mudadas e por isso as flores variavam. Não consigo ver arco de flores sem lembrar da casa dos meus avós!


     Já portão adentro uma cerca viva fazia um caminho até a casa como que conduzindo o visitante pátio adentro. De um lado flores, de outro plantações de moranguinhos cuidadosamente plantados exibiam sua beleza; era preciso andar com cuidado eram quase uma relíquia. No lado oposto havia imensas árvores não me recordo a espécie ,e um galho que parecia talhado para a finalidade havia duas correntes fortes, enormes e longas que sustentavam um balanço com um largo e confortável acento. Nunca poderia esquecer a cena. Os netos eram convidados para o local e meu avo se encarregava de fazer nossos pequenos pezinhos alcançarem com muita emoção a ponta dos galhos mais altos. Quem sabe era uma maneira de nos ensinar para que tentássemos voar alto.

     A tarde era animada com um lindo e delicioso café. As toalhas de mesa eram mais alvas do que a neve, havia bolos e doces de todos os tipos e cores, e um delicioso café com leite que nunca mais bebi outro igual. Era quase um cerimonial. Não posso dizer quem preparava tudo mas não havia nada absolutamente nada, fora do lugar naquela casa.Mesmo com muitas crianças não havia uma só mancha de sujeira nas paredes,as camas eram brancas, os lençóis pareciam engomados, imóveis sobre as camas. Muitos guardanapos brancos com lindíssimos bordados enfeitados com vasos de flores que pareciam nunca murcharem, em todos os lugares. Agora que sou adulta me pergunto como tudo aquilo era possível… o chão de madeira reluzia um brilho incrível.

     Acho que recortaram um castelo na Europa e plantaram naquela simples zona rural catarinense. Lembro do pequeno riacho, uma pontezinha de madeira e do outro lado os pastos com vacas leiteiras.
Meu avô logo se foi. Depois disso por longo tempo eu e minha prima andávamos dois quilômetros de bicicleta na estradinha de terra para dormir com minha avó. A casa parecia triste e solitária. Minha vó falava pouco, só sabia falar alemão nunca aprendeu a língua e se irritava quando conversávamos em português…

     Depois ela mudou-se para a pequena cidade de Riqueza onde morávamos. Os móveis eram os mesmos, o jardim nunca jamais parou de florescer,os guardanapos nunca perderam a goma e os bordados, os vasos nunca deixaram um só dia de exibir suas flores cuidadosamente colhidas. E o rádio em que todos os dias ela ouvia a Rádio Transmundial transmitida em alemão, nunca deixou de existir, era um companheiro inseparável. Nunca vi minha avó com roupa suja, desalinhada, ou com o cabelo despenteado, esse era cuidadosamente preso por um lindo coque postiço que escondia os poucos cabelos brancos. Gestos delicados, fala mansa, olhos azuis brilhantes e um sorriso cuidadosamente planejado nos lábios, como se estivesse sempre pronta para uma foto digna de revista.

     Nos mudamos para o Mato Grosso e a vi muito poucas vezes depois disso. Recebi muitas cartas escritas do punho dela em alemão…. (acho que as lágrimas vão descer),acho que antes de eu deixar tudo ainda guardava algumas delas… As cartas eram recheadas de palavras cuidadosamente selecionadas na bíblia, às vezes coladas junto com figurinhas, na maioria das vezes com flores. Eram palavras de elogio , incentivo e principalmente pra dizer que todos os dias ela orava por mim. Eu creio que sim… porque Deus cuidava de mim naquele tempo de uma forma imensamente especial. Até acho que foi depois da partida da minha mãe e dos meus avós que descarrilhei, talvez por falta daquele alicerce de oração, conselhos, incentivo, carinho e amor.

     Tristemente me deparei com o fato de que eu não conheci minha avó. Não sei nada sobre sua história sua família, seu passado. Não sem sentir um remorso tremendo por nunca ter perguntado ou ouvido nada sobre ela. Me senti cruel. Como se passa na vida das pessoas sem conhecer seu jardim interior?

     Meu avô era o único agrimensor daquela região, falava um pouco de português e segundo a lenda familiar foi ele que desenhou todas as estradas do oeste catarinense que hoje são grandes e importantes rodovias asfaltadas. Ele era dono do único veículo da região, um 29 como era chamado na época. Sei que vieram da Alemanha em busca de um futuro melhor e quando planejavam voltar chegou a segunda guerra mundial e por isso terminaram suas vidas aqui. Escrevo minha história não sem pensar como é possível passar pela vida de pessoas que admiramos e amamos tanto sem conhecer o jardim que tantas mãos e pessoas plantaram por dentro e que brota com cores, flores e perfumes maravilhosos por fora.

Edição: José Aléssio

Paulo Clóvis Schmitz

   A infância é o que resta de prazeroso na nossa memória de adultos. Tempo sem remorsos, sem dramas, mesmo com as cobranças, as tarefas e as carências materiais num Brasil mais pobre e rural. Havia o estudo, mas também tempo para brincar. Havia o rigor de uma educação tradicional, mas também caniços e piavas, o futebol e as fundas que assustavam passarinhos(não tínhamos pontaria boa o suficiente para acertar neles).

  Eram anos de rios com água em abundância correndo entre casas e pastos, entre arrozais e milharais, entre arbustos e aquela faixa de terra que os moradores deixavam arborizada, para evitar a erosão. Rios que rendiam banhos nos dias de calor e que se tornavam perigosos em dias de tormentas.
Eram tempos de roça e potreiros. Os campinhos margeavam as estradas de terra onde a gurizada marcava seus torneios e carrasquinhos para ocupar as horas nos fins de tarde do interior.

  Eram os fins de semana na casa de algum tio, as pescas em que primos metiam a mão embaixo das pedras e, em vez de peixes, traziam uma cobra d’água. Anos de festas de igreja regadas a gasosas, de novenas e domingueiras, de dedicatórias musicais pelo alto falante, e de italianos jogando a mora. De bergamotas fartas, de inocência mesclada com a tentação de espiar as meninas trocando de roupa pelas vidraças do grupo escolar.

  Na teia que tece a memória restam pedaços, resquícios, retalhos de um período único, em tudo diferente dos dias de pressa e atribulações da vida adulta, em que o encanto e a confiança dão lugar às obrigações, ao mau colesterol e às despesas fixas. Hoje, essas passagens retornam esparsas, como alertas de que nem tudo podemos e de que nem sempre somos o que sonhamos.

edição: José Aléssio

Juremir Machado da Silva

     Foi assim que Cáqui voltou a Palomas, numa tarde de agosto. Chovia muito. Ventava como nunca.
Ele vinha com um plano costurado ao longo dos últimos anos. Descarregou sua tralha na casa velha. Encheu três peças e um galpão com livros. A regra do seu jogo. Voltar ao estado quase natural.

      Fechou-se na velha casa com seus livros e seus discos. Era um tempo sombrio, de uma tristeza silenciosa e longa. Tudo aquilo que lhe fora caro na vida estava superado. A palavra utopia tornara-se um insulto. Chovia sempre. Dias e noites se pareciam. Estava no exílio.

      Passou a ser malvisto. As crianças sentiam medo dele. Adultos debochavam: – O homem dos livros.  Espalhou-se que era perigoso. – O homem dos livros. Os discos não chamavam atenção. Embora a música ouvida não fosse apreciada.

      Nos bares, falavam dele. Pensou-se em expulsá-lo. Diziam: – Não é certo. Não pode ser certo. Com todos aqueles livros. – Ninguém vive assim. Estava assentado que ele tinha ideias esquisitas. Essas ideias só podiam vir de todos aqueles livros. Depois de meses trancado em casa,  Cáqui começou a andar pelos campos.

      Ninguém fazia isso. Muito menos com um livro na mão. – Só pode ser tarado – exclamavam as mães. – Ou comunista – diziam os pais. – Ou maconheiro. – Ou tudo isso. – É mais provável. Quando souberam que ele costumava ler um livro de capa dura chamado “O processo”, descoberta de um guri que ousou se aproximar dele numa tarde de primavera, entraram em pânico.

     Houve reunião na praça do cinamomo: – Só pode ser foragido da justiça. Então invadiram a casa e queimaram os seus livros.

 

Raul Arruda Filho

 Não sei como cheguei até aqui. Deus é um cara gozador / Adora brincadeira, canta Caetano (mas a música é do Chico). Foi uma longa e maluca caminhada. E Beckett sempre esteve presente: Tente. Fracasse. Não importa. Tente outra vez. Fracasse outra vez. Fracasse melhor.


Nasci em Nossa Senhora dos Prazeres dos Certões e dos Campos das Lagens, um vilarejo no centro de Santa Catarina, às 06h45 da manhã do dia 04 de fevereiro de 1959. Tentei viver em outros lugares umas duas ou três vezes. Nunca consegui me adaptar. Estou sempre voltando para casa.

Escrevi livros, plantei árvores, e, em parceria, gerei filho. No intervalo entre uma coisa e outra, colecionei amigos e inimigos, flertei com o caos, procurei (sem sucesso) abraçar a serenidade budista.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos / Eu era feliz e ninguém estava morto, recita o fantasma de Álvaro de Campos, talvez para lembrar que a vida é terreno minado, a estrada pavimentada pelas ausências. Sobrevivi. Ter sorte ajuda. Ou pode ter sido consequência do velho truque que é desprezar as falsas intimidades. 

Aline Valek

 Sente saudades de um tempo que já se foi? Lamenta que pobres e negros possam entrar nas universidades, concorrendo a vagas que sempre foram suas? Cansado de ser chamado de reacionário por uma gente que quer mudar coisas que para você estão ótimas? Pare de se chatear. Seus problemas acabaram!

Volte a viver em um tempo em que todos sabiam o seu lugar: o da mulher, na cozinha; o do negro, na senzala; e o do pobre, bem longe de você! Agora isso é possível, com a nova Retro-Machine.

Desenvolvida pela Status Quo S.A. especialmente para você, a Retro-Machine permite que você viaje no tempo e volte para a época em que todos os privilégios eram seus e não era preciso se preocupar com manifestantes querendo mudanças.

Rubem Braga

  Então tudo ficou vazio. Não, não é isto, era mesmo muito mais grave ainda: tudo era vazio; apenas o que aconteceu foi que a dolorosa, a insuportável consciência disso ficou tão nítida que paralisou o homem. Nenhum sentido em seu trabalho nem em sua vida; nenhum sentido nos louvores nem nas censuras. A máscara que os outros lhe haviam posto, ou que lentamente, ao sabor das circunstâncias, ele se tinha composto para os outros, lhe pareceu de repente uma coisa tão falsa, tão vã; mas quando quis saber qual era sua verdadeira face, qual era sua própria verdade, não encontrou mais nada.

Compreendeu que aquela máscara era, ou ficara sendo, sua única verdade, embora ela própria fosse falsa; se a sua própria vida era uma contrafação, a máscara era legítima. Vivera antes talvez com uma noção vaga, quase inconsciente, de que havia em si mesmo duas pessoas – uma era aquela de uso diário, a outra era a autêntica. Foi naquele instante que teve a intuição de que a autêntica não existia, ou existia tão misturada com a outra que não era mais possível separar: perdera-se, gastara-se em antigas lutas, em antigas paixões, no longo hábito de viver.

Luis Fernando Veríssimo

 Oscar Wilde escreveu algumas das frases mais memoráveis e citáveis da língua inglesa para seus personagens, mas hoje o seu personagem mais lembrado é ele mesmo. Vários autores modernos o colocaram no palco com falas novas. Ele aparece na peça de Tom Stoppard The Invention of Love, sobre o poeta e classicista A.E. Housman, como uma espécie de contraponto flamante ao sóbrio mas também homossexual Housman, dizendo coisas como "a arte não pode ser subordinada ao seu sujeito, pois neste caso não é arte mas biografia, e biografia é a malha através da qual a vida real escapa". E "melhor um foguete caído do que nenhuma explosão de luz. Dante reservou um lugar no seu Inferno para os deliberadamente tristes - os taciturnos no doce ar, como ele disse". E "o artista é o criminoso secreto em nosso meio. É o agente do progresso contra a autoridade". E "um artista deve mentir, trapacear, enganar, ser infiel à Natureza e desprezar a História. Eu transformei minha arte na minha vida e fui um sucesso incondicional. O fulgor da minha imolação iluminou todos os cantos desta terra onde jovens sem conta recolhiam-se, cada um à sua própria escuridão". E "eu despertei a imaginação do século". O Wilde de Stoppard diz tudo isto a Housman depois de morto, esperando o barqueiro que levará a alma dos dois para o outro lado.

Leonardo Mendes

Talvez esse seja o nosso apocalipse. Uma epidemia de loucura, que por já ter nos afetado, não percebemos. É diferente de uma epidemia de cegueira, de sono ou que nos transforme em zumbis. Um louco não sabe quando ficou assim, nem mesmo se de fato é ele que está louco ou se são ou outros. Uma personalidade local de Ipanema, conhecida como Mulher de Branco, disse-me certa vez que ficou louca depois que uma manga caiu na sua cabeça. “Eu tava lá embaixo da árvore, a manga caiu e eu fiquei louca”. Acredito que ela estivesse sendo irônica. O fato é que, segundo especialistas, passamos dos limites. Tornou-se insalubre a convivência em sociedade, e o motivo é que cada um de nós está preso no próprio delírio, completamente incapaz de penetrar na maluquice do outro. Sentir raiva diante da demência alheia não seria um sintoma? Ou o que sentimos é apenas desgosto e tristeza, pelos outros e por nós mesmos, pela nossa incapacidade de curá-los? De todo modo, conversamos mais com nós mesmos, ouvindo o eco das nossas próprias palavras ressoarem entre nossos pares. Ou seja, como loucos que somos, falamos sozinhos, ainda que acompanhados. E esperamos. Esperamos por Godot e pela morte, mas estamos tão loucos que não sabemos disso. Esperamos pelo fim da loucura, como sobreviventes que acreditamos que somos.

Ruy Castro

 Em 1873, num quarto de hotel em Bruxelas, Paul Verlaine, 29 anos, atirou em Arthur Rimbaud, 19. O tiro acertou Rimbaud no pulso e de raspão, mas, por causa disso, Verlaine pegou dois anos de prisão, o romance entre os poetas teve fim e Rimbaud escreveu "Une Saison en Enfer". Valeu. O revólver, um Lefaucheux 7mm, de cabo de madeira, foi devolvido à loja onde Verlaine o comprara e lá ficou até seu atual proprietário perceber a preciosidade que tinha no cofre. Acaba de ser arrematado por um colecionador num leilão da Christie's, de Paris, por 435 mil euros (R$ 1,56 milhão).


Pergunto-me que fim terá levado a espingarda com que Castro Alves se feriu no pé durante uma caçada nas matas do Braz, em São Paulo, em 1868, o que contribuiria para sua morte em 1871. O 38 com que, em legítima defesa, o cadete Dilermando de Assis matou Euclydes da Cunha, no Rio, em 1909. A faca com que Manso de Paiva apunhalou mortalmente o senador Pinheiro Machado, também no Rio, em 1915. Ou a gravata com que Alberto Santos-Dumont se enforcou em Guarujá, em 1932.


Lá fora, eles são cuidadosos. Imagino que tenham sido guardadas a navalha com que Van Gogh decepou a própria orelha em 1888 e a arma com que finalmente se matou, em 1890. A espingarda calibre 12, de dois canos, que Ernest Hemingway disparou contra a cabeça no Idaho, em 1961. Ou a espada com que Yukio Michima praticou o "seppuku" e com a qual um amigo o decapitou, em 1970.


Eu sei, a pergunta é mórbida, mas onde estarão as armas com que os portugueses Camilo Castelo Branco, em 1890, e Antero de Quental, em 1891, o russo Vladimir Maiacóvski, em 1930, e o brasileiro Pedro Nava, em 1981, abreviaram suas vidas?


Às vezes, mais letal do que as balas é o caprichado bilhete ou carta deixado pelo suicida. A carta-testamento de Getúlio, por exemplo.

Becky Korich

  São 1.880 caracteres (dos quais já gastei 20) para aqui discorrer sobre alguma ideia. Não sou prolixa, sou até econômica nas palavras, mas parece um espaço exíguo para expor um tópico com forma e conteúdo. Só fazendo uma dieta para eliminar a gordura das palavras e fazê-las caber neste quadrado. Como nunca me dou bem com dietas, prefiro o exercício de tentar entender a arte da escrita.

Os mestres ensinam que escrever bem é tirar o sumo das ideias sem deixar um gosto concentrado. É não precisar de palavras difíceis para “enriquecer” o texto. É não ter a pretensão de ser inteligente nem engraçado —nada menos engraçado do que alguém que tenta ser engraçado. O sabor da boa escrita está justamente no improvável, na não intenção, no absurdo.

Eles ensinam que o bom escritor tem que ser generoso. Saber entregar e sair de cena: para que o leitor e o texto se relacionem, independente dele.

E provam que a boa escrita funciona, sim, com delimitações de tempo e espaço. Pois o que se apresenta como uma limitação é o que mais liberta, assim como é libertadora a finitude da vida. O prazo de validade e o espaço limitado despertam uma urgência, fazem a pessoa entregar o seu melhor. Os limites obrigam escolhas e renúncias; impedem o autor de dizer tudo. E são justamente as palavras não ditas que se conectam com o infinito, porque ultrapassam as fronteiras do entendimento.

E a nós, que somos protagonistas da nossa história, cabe o exercício de viver a urgência sem afobação, surpreender a vida com novas histórias, não ter que preencher todos os vazios, buscar, enfim, a infinitude dentro do nosso espaço limitado. Porque na nossa matemática imperfeita, não sabemos quantos caracteres ainda nos restam.

Otto Lara Resende

      Por que hei de agradar o rude sofrimento e mais rude torná-lo, na desesperança? Por que proclamar a tristeza inútil diante das coisas que secretamente e melhor compreendo? Não falarei do desamparo que finamente aperta os dedos na garganta. Não citarei o sentimento peculiar aos que têm propensão para o desengano e, mais do que nunca, ao crepúsculo, sentem-se traídos e ultrajados sem motivo. Não mais me referirei a estados de alma que nada contêm além de um vazio cinzento e interminável, um abismo de sombra e de abstrato, onde a tristeza rumina o seu cadáver. Todos os gestos seriam inúteis. Nada salva e tudo nos perde e atraiçoa.


      O temor sustenta minhas interrogações e de repente me sinto só, perdidamente só e anterior a todos, como se ninguém mais houvesse. Tudo desaparece na refração das águas da memória. Vejo as imagens deformadas, mas que persistem, fantasmas íntimos. Rio e já não entendo; choro e me dilacero lentamente no tempo em que tudo está pesadamente mergulhado. Não grito porque o hábito se forma e o pudor defende. Conheço e entendo. Algumas vezes adivinho, mas não devasso. O que sabe deve calar-se para não ferir. Se digo, as palavras nada significam senão o prazer de proferi-las e achá-las bem achadas, não para que exprimam, mas simples jogo colorido que diverte.

      Não proporei normas, nem direi o que abomino. Deu-nos Deus a palavra para melhor silenciar.
 No inarticulado, me descubro um homem, com um nome, certos hábitos, fisionomia, alguns cacoetes e muitas possibilidades. Mas sobretudo vivendo por conta própria. Foi um ato irresponsável confiar-me a mim mesmo. Meu destino gira nos meus dedos. Não me pertenço e nem me encontro. O tormento da lembrança, como cãibra, paralisa os gestos e sobrepõe ao que é o que já foi. Calculadamente percorro o caminho da fatalidade, onde os abismos espreitam e aguardam a imagem quebrada, e cem vezes traída.