A infância é o que resta de prazeroso na nossa memória de adultos. Tempo sem remorsos, sem dramas, mesmo com as cobranças, as tarefas e as carências materiais num Brasil mais pobre e rural. Havia o estudo, mas também tempo para brincar. Havia o rigor de uma educação tradicional, mas também caniços e piavas, o futebol e as fundas que assustavam passarinhos(não tínhamos pontaria boa o suficiente para acertar neles).
Eram anos de rios com água em abundância correndo entre casas e pastos, entre arrozais e milharais, entre arbustos e aquela faixa de terra que os moradores deixavam arborizada, para evitar a erosão. Rios que rendiam banhos nos dias de calor e que se tornavam perigosos em dias de tormentas.Eram tempos de roça e potreiros. Os campinhos margeavam as estradas de terra onde a gurizada marcava seus torneios e carrasquinhos para ocupar as horas nos fins de tarde do interior.
Eram os fins de semana na casa de algum tio, as pescas em que primos metiam a mão embaixo das pedras e, em vez de peixes, traziam uma cobra d’água. Anos de festas de igreja regadas a gasosas, de novenas e domingueiras, de dedicatórias musicais pelo alto falante, e de italianos jogando a mora. De bergamotas fartas, de inocência mesclada com a tentação de espiar as meninas trocando de roupa pelas vidraças do grupo escolar.
Na teia que tece a memória restam pedaços, resquícios, retalhos de um período único, em tudo diferente dos dias de pressa e atribulações da vida adulta, em que o encanto e a confiança dão lugar às obrigações, ao mau colesterol e às despesas fixas. Hoje, essas passagens retornam esparsas, como alertas de que nem tudo podemos e de que nem sempre somos o que sonhamos.
edição: José Aléssio