Mostrando postagens com marcador Sonetos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Sonetos. Mostrar todas as postagens

Florbela Espanca

 Anda um triste fantasma atrás de mim

Segue-me os passos sempre! Aonde eu for,
Lá vai comigo…E é sempre, sempre assim
Como um fiel cão seguindo o seu Senhor!

Tem o verde dos sonhos transcendentes,
A ternura bem roxa das verbenas,
A ironia purpúrea dos poentes,
E tem também a cor das minhas penas!

Ri sempre quando eu choro, e se me deito,
Lá vai ele deitar-se ao pé do leito,
Embora eu lhe suplique:Faz-me a graça

De me deixares uma hora ser feliz!
Deixa-me em paz!…” Mas ele, sempre diz:
“Não te posso deixar, sou a Desgraça!”

Augusto dos Anjos

 Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.

Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede…”
– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Artêmio Zanon

 Palpita em mim esta ilha catarina

com suas veredas mais contraditórias:
– argonautas perdidos na neblina,
– sonhos ardentes, tardes merencórias.

É que em minha alma americalatina
ouço canções em águas sem memórias,
descubro cinzas sem qualquer ruína
e atento busco marcas divisórias.

Nem só de lendas é este meu anseio
que me impele a vagar por estas rotas
gravando ao fogo o canto que semeio.

Absorto contemplário de gaivotas
perco-me no que nos seus voos leio
em terra firme e em ilusões remotas.

Paulo Bomfim

 Venho de longe, trago o pensamento

Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonia.

Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.

Retenho dentro da alma, preso à quilha
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha

Onde sonham morrer os albatrozes...
Venho de longe a contornar a esmo,
O cabo das tormentas de mim mesmo.

Mário Quintana

 No retrato que me faço

– traço a traço –
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore…

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança…
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão…

e, desta lida, em que busco
– pouco a pouco –
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança…
Corrigido por um louco


Augusto dos Anjos

 Vês! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Patativa do Assaré

 Amanhã, ilusão doce e fagueira,

Linda rosa molhada pelo orvalho:
Amanhã, findarei o meu trabalho,
Amanhã, muito cedo, irei à feira.

Desta forma, na vida passageira,
Como aquele que vive do baralho,
Um espera a melhora no agasalho
E outro, a cura feliz de uma cegueira.

Com o belo amanhã que ilude a gente,
Cada qual anda alegre e sorridente,
Como quem vai atrás de um talismã.

Com o peito repleto de esperança,
Porém, nunca nós temos a lembrança
De que a morte também chega amanhã.

Vinícius de Morais

De repente do riso fez-se o pranto
 Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
 E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

 De repente da calma fez-se o vento
 Que dos olhos desfez a última chama
 E da paixão fez-se o pressentimento
 E do momento imóvel fez-se o drama.

 De repente, não mais que de repente
 Fez-se de triste o que se fez amante
 E de sozinho o que se fez contente.

 Fez-se do amigo próximo o distante
 Fez-se da vida uma aventura errante
 De repente, não mais que de repente.

Florbela Espanca

 Este livro é de mágoas. Desgraçados

Que no mundo passais, chorai ao lê-lo!
Somente a vossa dor de Torturados
Pode, talvez, senti-lo... e compreendê-lo.

Este livro é para vós. Abençoados
Os que o sentirem , sem ser bom nem belo!
Bíblia de tristes... Ó Desventurados,
Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo!

Livro de Mágoas... Dores... Ansiedades!
Livro de Sombras... Névoas e Saudades!
Vai pelo mundo... (Trouxe-o no meu seio...)

Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,
Chorai comigo a minha imensa mágoa,
Lendo o meu livro só de mágoas cheio!.

Manuel Bandeira

Eu faço versos como quem chora De desalento , de desencanto Fecha meu livro se por agora Não tens motivo algum de pranto Meu verso é sangue , volúpia ardente Tristeza esparsa , remorso vão Dói-me nas veias amargo e quente Cai gota à gota do coração. E nesses versos de angústia rouca Assim dos lábios a vida corre Deixando um acre sabor na boca Eu faço versos como quem morre. Qualquer forma de amor vale a pena!! Qualquer forma de amor vale amar!

Araújo Figueiredo

 Por planícies e espérrimas montanhas

Andei errando como um beduíno,
E contei ao luar o meu destino,
Velado por dragões de outras entranhas.

E a ti, ó sol, que de purezas banhas
Os campos verdes, num clarão divino,
Contei, também, chorando, o desatino
Das minhas ânsias trágicas, estranhas.

Mas não contei ao mar as minhas ânsias,
Ao largo mar perdido nas distâncias,
Para não vê-lo, dessa vez, cavado.

Pois esse mar é um coração doente,
Igual ao meu, e vive eternamente,
Eternamente triste e emparedado.

Olavo Bilac

 Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada

e triste, e triste e fatigado eu vinha.

Tinhas a alma de sonhos povoada,

e a alma de sonhos povoada eu tinha…


E paramos de súbito na estrada

da vida: longos anos, presa à minha

a tua mão, a vista deslumbrada

tive da luz que teu olhar continha.


Hoje, segues de novo… Na partida

nem o pranto os teus olhos umedece,

nem te comove a dor da despedida.


E eu, solitário, volto a face, e tremo,

vendo o teu vulto que desaparece

na extrema curva do caminho extremo.

Ricardo Aleixo

 Convivo muito bem com os cães da rua.

Me apraz o velho e bom modo de vida
que os faz, sem ter do que cuidar na vida,
medir distâncias de uma a outra rua.

Comparto com os cães o ar da rua.
Se um deles me dirige um riso cardo,
como quem dissesse "E aí, Ricardo?",
respondo-lhe: "Olá, irmão!" E a rua,

que até há pouco era só mais uma rua
por onde vadiavam um cão e um bardo
(cada um caçando, do seu jeito, a vida),

me obriga a distinguir, nela, o que é vida
real do que será, quem sabe, um tardo
sinal do quão são irreais o cão e a rua.


João Carlos Teixeira

 Minha única certeza é minha morte

Virá festiva, com pendões vermelhos 

Provocadora com seu riso forte.

Mas me verá de pé, não de joelhos.

Florbela Espanca

 Meu coração da cor dos rubros vinhos

Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.

Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura...

Meu coração não chega lá decerto...
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto...

Eu tecerei uns sonhos irreais...
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!

João Carlos Teixeira

 Deu-me um deus de legado o tempo escasso

e o anseio de retê-lo em urdiduras.
Murcham flores nos campos porque passo
exilado em angústias já maduras.

O que sou não sei bem, nem o que faço.
Débil luz entrevejo nas clausuras
das fatais emoções em que desfaço
a antiga vocação das coisas puras.

Viajante que perdeu os seus roteiros
por querê-los é que ando em desatino
sob o cerco de demônios traiçoeiros.

Nau fendida que busca o porto vasto,
quanto mais de meus rumos me aproximo
mais sinto que de mim próprio me afasto.