Caio Fernando Abreu

     Devo dizer que também acho um pouco arrogante de minha parte dizer isso assim – enlouqueceu -, como se estivesse perfeitamente seguro não só da minha sanidade mas também da capacidade de julgar a sanidade alheia. Como dizer então? Talvez: Kacki começou a comportar-se de maneira estranha, por exemplo? ou : Kacki estava um tanto alterado; ou ainda: Kacki parecia muito necessitado de repouso.
 Seja como for, depois de algum tempo, e aos poucos, tão levemente que apenas ontem à tarde resolvi tomar essa providência, Kacki – desculpem a minha audácia ou arrogância ou empáfia ou como queiram chamá-la, enfim: Kacki enlouqueceu completamente.

      Pensei em levá-lo para uma clínica, lembrava vagamente de ter visto no cinema ou na televisão um lugar cheio de verde e pessoas muito calmas, distantes e um pouco pálidas, com o olhar fora do mundo, cercadas por enfermeiras simpáticas, prestativas. Achei que ele seria feliz lá. Mas bastou uma olhada no talão de cheques para concluir que não seria possível. Então optei pelo hospício. Sei, parece um pouco duro dizer isso assim, desta maneira tão seca: então-optei-pelo-hospício.

      As palavras são muito traiçoeiras. Para dizer a verdade, não optei propriamente. Apenas: 1º) eu tinha pouquíssimo dinheiro e ele menos ainda, isto é, nada, pois deixara de trabalhar desde que as borboletas nasceram em seus cabelos; 2º) uma clínica custa dinheiro e um hospício é de graça. Além disso, esses lugares como aquele que vi no cinema ou na televisão ficam muito retirados, e eu não poderia visitá-lo com tanta frequência como gostaria. O hospício fica aqui perto, no Rio Maina. Então, depois desses esclarecimentos, repito: optei pelo hospício. Kacki não opôs resistência nenhuma.

     Às vezes chego a pensar que ele sempre soube que, de uma forma ou outra, fatalmente acabaria assim. Portanto, coloquei-o num táxi, depois desembarcamos, atravessamos o pátio e, na portaria, o médico de plantão nem sequer fez muitas perguntas. Apenas nome, endereço, idade, se já tinha estado lá antes, essas coisas – ele não dizia nada e eu precisei ir respondendo, como se o louco fosse eu e não ele. Ah: nem por um minuto o médico duvidou da minha palavra. Pensei até que, se ele não estivesse realmente louco e eu dissesse que sim, bastaria isso para que ele ficasse por lá durante muito tempo.

      Mas a cara dele não enganava ninguém, sem se mover, sem dizer nada, aqueles olhos parados, o cabelo todo em desordem. Quando dois enfermeiros iam levá-lo para dentro eu quis dizer alguma coisa, mas não consegui. Kacki ficou ali na minha frente, me olhando. Não me olhando propriamente, havia muito tempo que não olhava mais para nada, seus olhos pareciam voltados para dentro, ou então era como se transpassassem as pessoas ou objetos para ver, lá no fundo deles, uma coisa que nem eles próprios sabiam de si mesmos. Eu me sentia mal com esse olhar, porque era um olhar muito… muito sábio, para ser franco. Completamente insano, mas extremamente sábio. E não é nada agradável ter em cima de você, o tempo todo, na sua própria casa, um olhar desses, assim trans-in-lúcido.

      Mas de repente seus olhos pareceram piscar, mas não devem ter piscado – devo esclarecer que, para mim, piscar é uma espécie de vírgula que os olhos fazem quando querem mudar de assunto. Sem piscar, então, os olhos dele piscaram por um momento e voltaram daquele mundo para onde ele havia se mudado sem deixar endereço. E me olharam os olhos dele. Não para uma coisa minha que nem eu mesmo via, através de mim, mas para mim mesmo fisicamente, quero dizer: para este par de órgãos gelatinosos situados entre a testa e o nariz, meus olhos, para ser mais objetivo.

      Olhou bem nos meus olhos, como havia muito não fazia, e fiquei surpreso e tive vontade de dizer ao médico de plantão que era tudo um engano, que ele estava muito bem, pois se até me olhava nos olhos como se me visse, pois se recuperara aquela expressão atenta e quase amiga que eu conhecia, como se me compreendesse e tivesse qualquer coisa assim como que uma vontade de que tudo desse certo para mim, sem nenhuma mágoa de que eu o tivesse levado para lá. Como se me perdoasse, porque a culpa não era minha, que estava lúcido, nem tampouco dele, que enlouquecera.

      Tudo isso me passou pela cabeça enquanto o olhar dele pousava sobre mim e sua voz dizia: – Só se pode encher um copo até a borda. Nem uma gota a mais. Então vim embora. Os enfermeiros seguraram seus braços e o levaram para dentro. Havia alguns outros loucos espiando pela janela. Pensei que o médico ia colocar a mão no meu ombro para depois dizer coragem, meu velho, como tenho visto no cinema. Mas ele não fez nada disso. Baixou a cabeça sobre o monte de papéis como se eu não estivesse mais ali, dei meia volta sem dizer nada do que eu queria dizer, que cuidassem bem dele, não o deixassem subir no telhado, recortar figurinhas de papel o dia inteiro, ou retirar borboletas do meio dos cabelos como costumava fazer. Atravessei devagar o pátio, hesitei no portão de ferro, depois resolvi voltar a pé para casa como se fosse para não chegar. Era de tardinha, eu me sentia mal e muito culpado.

     Quis conversar com alguém, mas me afastara de tudo e de todos e agora estava também sem ele, e eu tinha a impressão de que o meu próprio olhar tinha se tornado como o dele, e de repente já não era mais uma impressão. Quando percebi, estava olhando para as pessoas como se soubesse alguma coisa delas que nem elas mesmas sabiam. Ou então como se as transpassasse. Eram bichos feios e sujos. Quando as transpassava, começava a ver nas pessoas o que elas não sabiam de si mesmas, e isso era ainda mais terrível. O que elas não sabiam de si era tão assustador que me sentia como se tivesse violado uma sepultura fechada havia vários séculos.

 (Caio Fernando Abreu)

 edição: Kácki Aléssio