Raramente um homem sozinho sente vontade de rir. Incomoda-me estar só. Gostaria de falar com alguém sobre o que está me acontecendo, antes que seja tarde demais, antes que eu comece a assustar os garotinhos.
Nunca como hoje tive o sentimento tão forte de ser alguém sem dimensões secretas, limitado a meu corpo, aos pensamentos superficiais que sobem dele como bolhas. Construo minhas lembranças com meu presente. Sou repelido para o presente, abandonado nele.Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir de mim mesmo.
Para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, basta que nos ponhamos a narrá-lo.
Quando se vive, nada acontece.
Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começo. Os dias se sucedem aos dias, sem rima, nem solução: é uma soma monótona e interminável.
De quando em quando, chega-se a um total parcial, dizendo: faz três anos que viajo, três anos que estou em Bouville.
Também não há fim: nunca deixamos uma mulher, um amigo, uma cidade, de uma só vez. E todos os lugares se parecem: Xangai, Moscou, Argel, ao fim de uma quinzena é tudo igual.
Trecho do livro A Náusea
edição: José Aléssio