Asas do desejo

 Quando a criança era criança

Não sabia que era criança

Tudo lhe parecia ter alma
E todas as almas eram uma

(...) Quando a criança era criança
Era época dessas perguntas:

(...) Um lugar na vida sob o sol não é apenas um sonho?
Aquilo que eu vejo e ouço e cheiro
Não é só a aparência de um mundo diante de um mundo?

O poema do qual os trechos supracitados fazem parte nos é narrado inteiramente na abertura de Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987), e evoca as lembranças de uma época em que a inocência diante do mundo fazia parte da vida. Como sabemos, as crianças são inocentes a quase tudo o que as rodeia, e por isso se aventuram, inconsequentes, no ambiente, a fim de descobrir o funcionamento das coisas. Elas são corajosas ao se introduzir nessa jornada de descobertas, de querer entender os porquês dos porquês, de perguntar tudo sobre tudo, e nunca parecem satisfeitas com as respostas que encontram. O que muitas vezes não notamos é que esse anseio de querer saber sempre mais, de querer desvendar tudo o que nos desperta interesse, prevalece dentro de cada um mesmo depois da infância, só que talvez em menor escala, ou oprimido pelo embaraço ou pelo medo.

E é exatamente sobre isso que se trata Asas do Desejo, um poema  que nos apresenta a eterna busca do homem por aquilo que lhe é desconhecido. Toda a trama se passa na Berlim Ocidental antes da queda do muro, onde nos são apresentadas duas visões sobre o mesmo tema – a dos anjos (em preto e branco) e a dos seres humanos (colorida). É uma época dividida não apenas pelo muro literal, mas também por ideologias, pela guerra fria, saudade, dor, economia, política e insegurança. Um cenário de devastação, marcado por pessoas solitárias e oprimidas, será a base para entendermos a função dos anjos Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) na história, que passam o tempo todo consolando essas pessoas o máximo possível – talvez nem sempre com sucesso.

 Através deles entenderemos todas as frustrações e decepções que, de uma forma ou de outra, dominam os seres humanos em geral. E por trás de todas essas questões está a grande necessidade humana de entender os porquês da vida, a eterna busca por explicações suficientes que justifiquem todo o sofrimento do mundo.  Asas do Desejo é um daqueles filmes raros onde tanto técnica quanto conteúdo são irrepreensíveis, e só poderia ter sido entregue por um diretor sensibilíssimo como Wim Wenders.  Nessa retratação do mundo dominado por barreiras divisórias, o que se sobressai é a mensagem de que nenhuma delas é definitiva, e que mesmo nós podemos lidar com o desconhecido, com o inexplicável, mesmo que talvez nunca cheguemos a desvendá-lo por completo.

Edição de texto: José Aléssio