Woody Allen já declarou que de toda sua obra o filme que mais gosta é A Rosa Púrpura do Cairo.
A história é ambientada no período da Grande Depressão. Cecília, uma garçonete que vive um casamento fracassado, passa horas sonhando com os filmes que assiste e com o glamour dos astros do cinema. A contrastante realidade social e pessoal da protagonista em relação ao mundo mostrado nos filmes serão as colunas centrais de A Rosa Púrpura do Cairo, e o doloroso impasse de escolher entre a realidade e a ficção acaba atingindo em cheio o espectador.Com essa premissa da escolha entre o maravilhoso impossível e a dura realidade, somos arrastados para um dos finais mais secos e, paradoxalmente, emocionantes dos filmes de Woody Allen nos anos 80. Cecília é a encarnação do indivíduo descontente que não tem forças para levar adiante uma mudança de vida mais radical. O cinema aparece aí como uma arma vital, o lugar onde é possível se entregar ao sonho e acreditar que ele é (ou pode ser, em algum lugar) a realidade de alguém. Ao criticar o comodismo, Woody Allen também louva o poder de “terceirização de problemas” que o cinema tem, mas nos mostra o outro lado da moeda: a ficção não é tão perfeita como nos faz acreditar.
Os conflitos e as dificuldades que pontuam as relações humanas e amorosas são características que se sobressaem no filme. Em um dado momento a comédia, o drama e a fantasia mesclam-se para dar conta dos muitos níveis de emoções e projeções que o cinema comporta.
No tocante ao casal protagonista, uma docilidade afetada (“cinematográfica”) muito bela pontua a relação. Através da fotografia escura de Gordon Willis, o cenário desse romance passa por cores tão intensas ou desbotadas quanto o desenrolar do amor entre eles. Quanto mais a burocracia da realidade se impõe, mais desgastado e claramente ridículo se torna o affair entre a protagonista e Tom Baxter, o aventureiro fictício. No entanto, vemos que o mesmo romance fora das telas também não dá em nada. Se nem a ficção nem a realidade podem proporcionar a felicidade, cabe ao indivíduo buscá-la onde mais lhe apraz e é justamente o que faz Cecília quando vai assistir a O Picolino e parece esquecer de todos os seus infortúnios, mergulhando na magia da dança de Ginger Rogers e Fred Astaire, ao som de Cheek to Cheek. Com uma objetividade quase dolorosa, chegamos ao final com um misto de emoções e um prazer inexplicável.
“A Rosa Púrpura do Cairo”, uma antiga lenda, termina por transformar-se num filme-conto fantástico e impossível, onde a tentativa de fuga da realidade fracassa, mas o amor pela vida ou pelos raros momentos felizes que ela proporciona (mesmo que sejam através de uma película 35mm), compensam todo o sofrimento de se viver.
Luiz Santiago