O Menino e o Vento é um filme belíssimo e poético. Iniciando-se num tom realista e dramático a narrativa penetra num clima fantástico/surrealista, quando se deixa dominar pela voz e a visão da personagem principal da história. Com direção de Carlos Hugo Christensen, apoiado no conto de Aníbal Machado, “O Iniciado do Vento”, tem diálogos de Millôr Fernandes.
Carlos Hugo Christensen consegue transmitir muito bem o dia-a-dia de uma cidadezinha brasileira do interior com seus tipos simples, mas que guardam em suas palavras e ações uma forte dose de atraso no arraigamento de certos conceitos comportamentais. Dados fortemente presentes no texto de Aníbal Machado, que no filme se tonificam no encadeamento das sequências denunciando as maneiras pelas quais as pessoas lançam mão para burlar, ou mesmo preservar estes preconceitos, quando objetivam mostrar poder, ou atingir um objetivo pessoal.
Através do julgamento do engenheiro, que envolve e comove toda a cidade, o filme narra a história do seu relacionamento com o menino Zeca da Curva, quando em férias na pequena cidade de Bela Vista, interior de Minas, onde está sendo acusado do assassinato e sumiço do corpo do menino.
Podemos dividir o filme em duas partes quanto à sua narrativa. A primeira seria a de um tom realista/dramático dado à história até antes do depoimento do engenheiro – quando o filme expõe a visão dos habitantes da cidade. A segunda, de um tom totalmente surreal, fantástico, a partir do depoimento do engenheiro, quando ele narra a sua visão do relacionamento que teve com o menino.
O filme se inicia com a chegada à cidade, de trem, do rapaz, o engenheiro José Roberto Nery. Nota-se que muitos curiosos se aproximam e seguem o trem a sua passagem, quando, de repente, alguém arremessa uma pedra que atravessa a vidraça do trem, quebrando-a e quase atingindo o rapaz. Logo em seguida o trem para. Uma multidão se aglomera na estação e nota-se que alguns estão armados com pedaços de pau. Um alto-falante da estação anuncia a chegada do engenheiro e pede calma aos populares para que se possa fazer justiça através de um julgamento legal. O delegado da cidade entra no trem, abrindo caminho entre a multidão, e vai até ao rapaz dizendo que veio protegê-lo. Sabemos então que ele está sendo julgado à revelia pelo assassinato de um menino que conheceu quando de sua estada, em férias, na cidade.
A primeira parte situa o espectador na questão principal que motiva o filme: o julgamento do rapaz por assassinato e o comportamento das demais personagens, habitantes da cidade e ocupantes de cargos ou posições chaves na trama que, em torno do rapaz, contribuirão para a sua acusação ou absolvição.
Enfatizando através dos diálogos e embates os mecanismos de poder e atuação que tem estas pessoas no reverter do quadro de uma situação para um determinado lado dependendo do interesse dos envolvidos.
Por exemplo, o filme primeiro apresenta a reação do povão, da multidão, da plebe: justiça imediata pelas próprias mãos. Ela se arma de pedras e paus, rapazes dançam capoeira, outros observam escondidos o rapaz passar, intimidam soltando fogos na direção dele, e cantam um refrão assustador “Mata! Mata o passarão que vem de fora”.
Em seguida, o delegado o leva escoltado até o hotel de Laura, onde recebe a visita do advogado, que tenta convencê-lo a contar a verdade e diz que por dinheiro trabalhará “direitinho” na sua absolvição. Coage o rapaz revelando que a dona do hotel, Laura, é a principal testemunha, e que foi ela quem induziu que o interesse dele por um menino pobre e analfabeto só poderia ter sido sexual, o que deixa o engenheiro enfurecido e indignado.
A personagem seguinte de embate com o rapaz é Mário de Paiva, o primo rico do menino assassinado, que lhe envia uma carta marcando um encontro, fora do hotel, e dizendo que sabe onde Zeca da Curva está. Este talvez seja o momento mais explicativo da situação em que se encontra o engenheiro. Na conversa Mário se revela homossexual e que tinha “morado” na jogada dele. O que deixa o engenheiro atônito, revelando que a personagem não se sente homossexual. Mário prossegue dizendo que o entende perfeitamente bem, pois também faz parte da minoria e as minorias têm que se defender dos “normais”, da mesma forma como os judeus e os comunistas. Enfatiza que os “normais” jamais irão absolvê-lo. Sugere então que ele terá que ceder. Que poderá mudar seu depoimento, pois ele, Mário, tem que se defender dos “normais”, não pode dar chance nenhuma para que eles saibam ou suspeitem dele. E que, portanto, vai depor contra ele, caso ele não ceda mais uma vez. O engenheiro se indigna e os dois não chegam a um entendimento.
O embate de José Roberto com Laura é mostrado em cenas que demonstram a dubiedade de comportamento desta. Mostra-se carinhosa, atenciosa e amiga quando está com o rapaz e, em seguida, quando desce e conversa com o escrivão muda de tom o acusando de monstro, que deveria ficar enterrado na mesma terra que Zeca. O escrivão, por sua vez, diz que o que importa é o que ele escreve. Uma mudança de palavra para uma outra relativa pode levar à interpretação diferente.
Demonstrado assim o microcosmo do poder da cidadezinha, repleto de nuances reveladoras, o filme prossegue para o julgamento do rapaz.
Neste momento o filme já esculpiu as características da personalidade da personagem principal, o rapaz acusado: ingênuo, puro, não aceita compactuar com tramoias, pois acredita em sua inocência e que vai ser compreendido e absolvido.
O julgamento começa e o advogado relata ao juiz que o réu fará a sua própria defesa e que não pretende, para espanto do juiz, interrogar nenhuma das testemunhas convocadas a depor.
Os depoimentos se iniciam.
A segunda parte do filme muda o tom da narrativa. Ela se torna fantástica e altamente poética quando se iniciam as sequências do depoimento do engenheiro. A partir daí o filme toma a visão fantástica do rapaz. Mergulha neste tom e assume uma narrativa fantástica/surrealista se sobrepondo a uma explicação realista dos fatos, ou seja, de sentido lógico.
O engenheiro inicia o seu depoimento dizendo ter passado 28 dias na cidade e que veio até ela em busca do vento. Pergunta como podem saber se foi ele a última pessoa a ver o menino. Diz que talvez possa explicar tudo contando a história tal como aconteceu. E o que aconteceu não se exprime por documentos. Quem o aponta como anormal sabe que ele não se sente como todos.
Pelo encadeamento da narrativa, organizemos alguns tópicos que podem levar a uma melhor compreensão:
1. O rapaz vai em busca do vento. Sente-se cansado de seu ceticismo e está estafado.
2. Ele encontra um menino que faz o vento soprar. Ele se afasta de seu ceticismo, da sua fuga do sonho. Volta a sonhar.
3. Ele se apaixona pelo vento a ponto de não poder viver mais sem o vento. Começa a confundir o menino com o próprio vento. Fica angustiado quando não venta, pois o menino desaparece. Quando não vê o menino, procura incessantemente o soprar do vento.
4. Ele vai até a colina onde está acontecendo o “ventão”: o menino não está lá e ele fica confuso. O menino chega e os dois ficam em êxtase no vento. O menino fica completamente nu, abraça-o numa despedida e some no vento.
5. Ele vai embora tendo a certeza de que o menino vai voltar. Mas quem volta é ele, acusado da morte do menino que desapareceu.
6. Em seu depoimento ele procura fazer entender a todos que sua história é verdadeira: que o menino virou vento. E é neste momento que – fantasticamente – o vento volta à cidade.
Antônio Moreno