Jean-Paul Sartre

 Raramente um homem sozinho sente vontade de rir. Incomoda-me estar só. Gostaria de falar com alguém sobre o que está me acontecendo, antes que seja tarde demais, antes que eu comece a assustar os garotinhos.

 Nunca como hoje tive o sentimento tão forte de ser alguém sem dimensões secretas, limitado a meu corpo, aos pensamentos superficiais que sobem dele como bolhas. Construo minhas lembranças com meu presente. Sou repelido para o presente, abandonado nele.

 Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir de mim mesmo.

Para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, basta que nos ponhamos a narrá-lo.
 Quando se vive, nada acontece.

 Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começo. Os dias se sucedem aos dias, sem rima, nem solução: é uma soma monótona e interminável.

 De quando em quando, chega-se a um total parcial, dizendo: faz três anos que viajo, três anos que estou em Bouville.

 Também não há fim: nunca deixamos uma mulher, um amigo, uma cidade, de uma só vez. E todos os lugares se parecem: Xangai, Moscou, Argel, ao fim de uma quinzena é tudo igual.


 Trecho do livro A Náusea
  edição: José Aléssio

Eugênio Bucci

 O Estado se ajoelha para o capital e ainda abana o rabinho. A ciência, para se fazer ouvir, precisa enviar representantes aos programas de celebridades na televisão, onde disputa espaço com o sensacionalismo mais torpe e as frivolidades mais fúteis. A política perdeu os laços que um dia teve com o argumento racional; agora, se quiser alcançar o público, tem de contratar cantores beócios, ainda que afinados, e empacotar sua mensagem em versos lacrimosos e melodias previsíveis. Assim caminha a humanidade – para a extinção.

Em poucas palavras, este é o recado essencial do filme Não olhe para cima, dirigido por Adam Mckay, em cartaz no Netflix. Nestes tempos de amortecimento dos sentidos cívicos, as pessoas se entretêm umas às outras “postando” comentários sobre a superprodução. Trata-se de uma febre mais contagiosa que outras febres, para as quais a sociedade resolveu fechar os olhos de uma vez.

 Na trama, dois cientistas (Leonardo Dicaprio e Jennifer Lawrence) descobrem que um cometa – na verdade um bloco mineral com quase dez quilômetros de extensão – vai colidir com a Terra e destruir a vida no planeta. Eles tentam explicar o cataclismo para a presidente dos Estados Unidos (Merryl Streep), mas a conversa não prospera. A governante não disfarça o enfado e se declara cansada de gente que vai até ela anunciando o fim do mundo. Então, diz que precisa aguardar as eleições para decidir o que fazer..

Os dois astrônomos ficam atônitos, mas não desistem. Desobedecendo as instruções expressas da Casa Branca, resolvem dar uma entrevista a um telejornal que mescla amenidades e atrocidades para capturar a audiência. O resultado é um fiasco vexatório, motivo de chacota nacional.

O cometa vai se aproximando, com sua velocidade estonteante, enquanto o enredo evolui num andamento que mescla tragédia e comédia, romance e catástrofe, sátira e fábula, thriller e distopia. O espectador não desgruda. Talvez falte realismo aqui ou ali, talvez falte verossimilhança, mas o plano geral tem força, magnetismo e poder de convencimento.

 Não olhe para cima é um dos mais ácidos retratos da cultura dos nossos dias. Merece ser visto com atenção redobrada. Mais do que um blockbuster, é um diagnóstico ferino do mal que vem comendo por dentro aquilo que já chamamos de civilização.

O problema do filme não tem nada que ver com cometas, asteroides ou meteoritos – esses corpos celestes servem apenas de pretexto cênico e dramático. O problema central é o enlouquecimento dos métodos pelos quais a sociedade democrática toma suas decisões. É como se as imagens espetaculares que se acendem em toda parte não nos abrissem a visão do que se passa na realidade, mas nos cegassem. É como se estivéssemos todos encerrados numa nova Caverna de Platão, cujas paredes são feitas de telas eletrônicas.

Gravemente enfermos, a sociedade e o Estado perderam a capacidade de escutar a ciência – esta só ganha crédito quando o pesquisador é sexy. O capital, de sua parte, só tem ouvidos para os seus próprios cientistas, aqueles que são pagos para dizer as “verdades científicas” que legitimam o lucro e a acumulação. Se acontece de essas “verdades” entrarem em choque com as condições mínimas de preservação da vida no planeta, ora, a vida que espere, mesmo morrendo.

Não olhe para cima vem para nos falar exatamente disso. A presidente dos EUA é tratada como subalterna pelo seu principal financiador de campanha, o magnata Peter Isherwell (Mark Rylance). Um misto de Tim Cook e Elon Musk, Peter Isherwell é um monopolista da superindústria dedicada à extração dos nossos dados pessoais. Entra quando bem entende em qualquer reunião na Casa Branca. Não tem limites. Dá ordens à chefe de Estado. Não admite nenhuma contestação. Na hora mais crítica, manda abortar uma missão espacial comandada diretamente pelo governo e determina que os “estudos” dos seus cientistas particulares prevaleçam sobre os planos da Nasa.

A política faliu. Só o que resta a quem queira criticar o imobilismo estatal e a ganância capitalista é apelar para os astros do showbusiness, retratados como alienados de rostinho bonito. A política não passa de um escaninho menor dentro da indústria do entretenimento. Fim de linha total.

Para terminar, vale registrar aqui uma autoironia caprichosa: Não olhe para cima critica o entretenimento, mas é também uma mercadoria lucrativa dentro dessa superindústria. Assim, e somente assim, a humanidade ainda consegue rir de si mesma. 

Márcio Moreira

 Este poema não tem começo

 Por mais que tente movê-lo, esbarro no que desconheço
 Este poema não tem meio
 Por mais que tente medi-lo, ele se faz alheio
 Este poema não tem fim
 Por mais que tente matá-lo dentro de mim

Caio Fernando Abreu

     Devo dizer que também acho um pouco arrogante de minha parte dizer isso assim – enlouqueceu -, como se estivesse perfeitamente seguro não só da minha sanidade mas também da capacidade de julgar a sanidade alheia. Como dizer então? Talvez: Kacki começou a comportar-se de maneira estranha, por exemplo? ou : Kacki estava um tanto alterado; ou ainda: Kacki parecia muito necessitado de repouso.
 Seja como for, depois de algum tempo, e aos poucos, tão levemente que apenas ontem à tarde resolvi tomar essa providência, Kacki – desculpem a minha audácia ou arrogância ou empáfia ou como queiram chamá-la, enfim: Kacki enlouqueceu completamente.

      Pensei em levá-lo para uma clínica, lembrava vagamente de ter visto no cinema ou na televisão um lugar cheio de verde e pessoas muito calmas, distantes e um pouco pálidas, com o olhar fora do mundo, cercadas por enfermeiras simpáticas, prestativas. Achei que ele seria feliz lá. Mas bastou uma olhada no talão de cheques para concluir que não seria possível. Então optei pelo hospício. Sei, parece um pouco duro dizer isso assim, desta maneira tão seca: então-optei-pelo-hospício.

      As palavras são muito traiçoeiras. Para dizer a verdade, não optei propriamente. Apenas: 1º) eu tinha pouquíssimo dinheiro e ele menos ainda, isto é, nada, pois deixara de trabalhar desde que as borboletas nasceram em seus cabelos; 2º) uma clínica custa dinheiro e um hospício é de graça. Além disso, esses lugares como aquele que vi no cinema ou na televisão ficam muito retirados, e eu não poderia visitá-lo com tanta frequência como gostaria. O hospício fica aqui perto, no Rio Maina. Então, depois desses esclarecimentos, repito: optei pelo hospício. Kacki não opôs resistência nenhuma.

     Às vezes chego a pensar que ele sempre soube que, de uma forma ou outra, fatalmente acabaria assim. Portanto, coloquei-o num táxi, depois desembarcamos, atravessamos o pátio e, na portaria, o médico de plantão nem sequer fez muitas perguntas. Apenas nome, endereço, idade, se já tinha estado lá antes, essas coisas – ele não dizia nada e eu precisei ir respondendo, como se o louco fosse eu e não ele. Ah: nem por um minuto o médico duvidou da minha palavra. Pensei até que, se ele não estivesse realmente louco e eu dissesse que sim, bastaria isso para que ele ficasse por lá durante muito tempo.

Caetano Veloso

 No dia em que eu vim-me embora

Minha mãe chorava em ai
Minha irmã chorava em ui
E eu nem olhava pra trás

No dia que eu vim-me embora
Não teve nada de mais
Mala de couro forrada com pano forte brim cáqui
Minha vó já quase morta
Minha mãe até a porta
Minha irmã até a rua
E até o porto meu pai

O qual não disse palavra durante todo o caminho
E quando eu me vi sozinho
Vi que não entendia nada
Nem de pro que eu ia indo
Nem dos sonhos que eu sonhava

Senti apenas que a mala de couro que eu carregava
Embora estando forrada
Fedia, cheirava mal
Afora isto ia indo, atravessando, seguindo
Nem chorando nem sorrindo
Sozinho pra Capital
Nem chorando nem sorrindo
Sozinho pra Capital…

Raul Drewnick

 Não sou um desses tristes oportunistas, de ocasião. Sou triste por convicção.

 ***
 Segui o conselho de Sócrates. Hoje me conheço melhor que ontem. Ontem eu era mais feliz.

 ***
Embora se diga que não, dos poetas e dos mágicos se esperam sempre os mesmos pássaros e as mesmas cartolas.
 ***
 A literatura é um vício que talvez um dia qualquer homem possa admitir na hora mais clara de uma manhã de domingo.

Antônio Callado

      O amigo do homem desaparecido se aproximou da janela do seu apartamento tendo na mão o livro que o desaparecido dedicara a ele: “Para você, meu grande amigo”.

    O amigo olhou lá fora o mar que ia além da praia e que flambava ao sol do meio-dia. Curioso como ele tinha desaparecido de forma tão absoluta. Evaporou-se.

   Soube-se depois da sua morte que ele passara os últimos  anos de vida num lugarejo chamado Figueira Aléssio. Ninguém sabia ao certo de que modo morrera.

    “Quando parou no fim da linha o homem que ia desaparecer saltou e foi andando para a pequena casa em que morou sua família.

   Olhou-a por algum tempo e, ao percebê-la vazia, adentrou-a e revisitou seus cômodos.

   O homem que desapareceu saiu da casa,  fechou sem ruído a porta, passou em silêncio pelo portão de tábuas brancas e se foi. Como um ladrão." 

Sobre o conto Prisão Azul, edição de José  Aléssio

Florbela Espanca

 Anda um triste fantasma atrás de mim

Segue-me os passos sempre! Aonde eu for,
Lá vai comigo…E é sempre, sempre assim
Como um fiel cão seguindo o seu Senhor!

Tem o verde dos sonhos transcendentes,
A ternura bem roxa das verbenas,
A ironia purpúrea dos poentes,
E tem também a cor das minhas penas!

Ri sempre quando eu choro, e se me deito,
Lá vai ele deitar-se ao pé do leito,
Embora eu lhe suplique:Faz-me a graça

De me deixares uma hora ser feliz!
Deixa-me em paz!…” Mas ele, sempre diz:
“Não te posso deixar, sou a Desgraça!”

Mia Couto

Ele escreve versos! Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha. — Há antecedentes na família? — Desculpe doutor? O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias: — Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol. Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor. Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito. — São meus versos, sim. O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto? Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado. — O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica. Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar. Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino: — Dói-te alguma coisa? —Dói-me a vida, doutor. O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo: — E o que fazes quando te assaltam essas dores? — O que melhor sei fazer, excelência. — E o que é? — É sonhar. Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe. O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu: — Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica. A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente. Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendidos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu. — Não continuas a escrever? — Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio. O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente. — Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços. — Não importa — respondeu o doutor. Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu. Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios: — Não pare, meu filho. Continue lendo…

Sérgio Augusto

 Isto não é um diário, mas poderia ser. Então recomeço: domingo, 30 de abril, final de tarde. Ao chegar à pág. 282 de A Oeste do Éden, sou surpreendido por um furo do site do Daily News: Jean Stein, a autora do livro, acabara de se suicidar. Autor morto a gente costuma ler até mais do que os vivos, mas naquelas circunstâncias e com o corpo ainda no necrotério nunca me havia acontecido. Pelos meus cálculos, fazia apenas cinco horas que Jean se jogara do 15.º andar do prédio em que morava, na Gracie Square, em Manhattan.


Foi uma experiência bizarra, perturbadora, que levei um dia para metabolizar. Noves fora o fato de ter gostado imensamente do livro e admirar a autora, ela se matara como Mary Jennifer, a protagonista do penúltimo capítulo de A Oeste do Éden, justo o que estava a ler na tarde de domingo. Em maio de 1976, a jovem e bipolar filha da atriz Jennifer Jones atirou-se do 22.º andar de um prédio de Westwood, em Los Angeles. Coincidência demais.

Mesmo que eu estivesse lendo O Velho e o Mar em 2 de julho de 1961, quando Hemingway estourou os miolos, o impacto teria sido diferente. Suicídios perpassavam as narrativas de Adeus às Armas e Por Quem os Sinos Dobram, mas Santiago, o pescador de O Velho e o Mar, não dava cabo da própria vida. Além disso, fazia então um bom tempo que não abria um livro de Hemingway, interregno só interrompido quando lançaram o póstumo Paris É Uma Festa.
Se eu estivesse lendo Sylvia Plath no dia (11 de fevereiro de 1963) em que ela vedou as portas e ligou o gás da cozinha, bem, naquela época a desconhecia por completo. Conheci e admirava Ana Cristina César, mas em 29 de outubro de 1983, quando ela, à maneira de Jean Stein, atirou-se do alto de um prédio em Copacabana, eu estava viajando, sem um escasso verso dela na bagagem.


David Foster Wallace renderia comparação mais conveniente. Eu podia estar lendo Infinite Jester em 12 de setembro de 2008 (a tradução brasileira, Graça Infinita, épica façanha de Caetano W. Galindo, ainda não existia), ou seja, no dia em que o autor se enforcou no quintal de sua casa e sem dúvida teria ficado impressionado se já tivesse passado ou estivesse passando pela pág. 227, onde a personagem Koelle, vê-se tentada a enforcar-se com uma corda.
Suicídios são contagiantes, pesquisas confiáveis o demonstram. Werther foi um vírus espiritual, no século 18. Ao ser informada do suicídio de Sylvia Plath, a também poeta Anne Sexton ficou paralisada e balbuciou: “Eu deveria ter morrido no lugar dela” (tradução livre de “That death was mine”). Onze anos depois, envolta num casaco de pele herdado da mãe, Sexton trancou-se na garagem da casa, ligou a ignição do carro e enfim consumou o ato que outras vezes resultara infrutífero.

Como todos os citados, Jean Stein sofria de depressão em alto grau. Não era uma imagem woolfiana a que ela projetava publicamente. Jamais a imaginaria enchendo de pedras os bolsos do casaco e deixando-se arrastar pelas águas do Hudson ou do East River, muito menos se jogando de um edifício, uma das formas mais espalhafatosas de pôr termo à vida. Seu livro - história oral de cinco clãs que enriqueceram em Los Angeles e consolidaram a mitogonia hollywoodiana - é um vasto cemitério de canalhas, desajustados, deprimidos e suicidas, a maior parte criada em berço de ouro. Quem disse que dinheiro não traz infelicidade?

Jules C. Stein, pai de Jean, morreu podre de rico. Não como oftalmologista, seu métier inicial, mas como fundador e coproprietário da monopolista MCA (Music Corporation of America). Seu sócio, Lew Wasserman, vivia metido com gângsteres e enfartou com gritos histéricos um de seus subordinados na MCA. Não bastasse, foi quem mais estimulou Ronald Reagan a trocar o show business pela política.

Os Steins viviam numa mansão cercada por muros e jardins em Beverly Hills, que tinha nome romântico, Misty Mountain, e hospedou muitas histórias glamourosas e outras quase grotescas, frequentemente estreladas pelos pileques de Doris Stein, pelo descrito, uma bruaca, muito ligada à odiosa mãe de Gore Vidal, outra tremenda pinguça. No funeral do patriarca da família, Doris barrou a secretária e amante do finado, que teve de assistir à cerimônia trepada numa árvore, como a faulkneriana Caddy Compson no começo de O Som e a Fúria.

“Quero morrer num jardim entre muros”, confessa Jean no último capítulo de seu livro, aludindo, obviamente, a Misty Mountain, para ela, o éden sobre a Terra. Tarde demais; seu destino era a selva de concreto. Sua alma cosmopolita levou-a a Wellesley, Sorbonne, ao jornalismo cultural (coeditou Paris Review com George Plimpton e Grand Street sozinha), teve um caso com William Faulkner, que tinha idade para ser seu pai. Reinava em Nova York como uma das maiores anfitriãs de intelectuais e artistas da Costa Leste. Foi numa de suas badaladíssimas festas que Gore Vidal e Norman Mailer se engalfinharam verbalmente em público pela primeira vez.

Imaginava-a uma Nora Ephron mais séria ou uma Renata Adler mais leve, não uma angustiada sobrevivente - de que mundo, exatamente, não sei, mas que ele, se não acabou, está no finzinho, como o nosso.