Albert Camus

     O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas desprevenidas. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar muito, seria idiota! E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre.

      Oran é uma cidade aparentemente moderna. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois. Também isso não é original. Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.

      Foi mais ou menos nessa época que os nossos concidadãos começaram a se inquietar, pois as fábricas e os depósitos vomitaram centenas de cadáveres de ratos. Em alguns casos, foi necessário acabar de matar os bichos, pois sua agonia era demasiado longa. Mas desde os bairros, exteriores até o centro da cidade, por toda parte onde os nossos concidadãos se reuniam, os ratos esperavam em montes, nas lixeiras ou junto às sarjetas, em longas filas.

      A imprensa da tarde ocupou-se do caso a partir desse dia e perguntou se a municipalidade se propunha ou não a agir e que medidas de urgência tencionava adotar para proteger os seus munícipes dessa repugnante invasão. A municipalidade nada se tinha proposto e nada previra, mas começou por reunir-se em conselho para deliberar. Foi dada a ordem ao serviço de desratização para recolher os ratos mortos. Em seguida, dois carros do serviço de desratização deveriam transportar os animais até o forno de incineração de lixo a fim de serem queimados. Mas, os dias se seguiram, a situação agravou-se. O número de roedores apanhados ia crescendo e a coleta era a cada manhã mais abundante. A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrerem em grupos.

      Dos porões, das adegas, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres humanos. À noite, nos corredores e nas ruelas, ouviam-se distintamente seus guinchos de agonia. De manhã, nos subúrbios, encontravam-se estendidos nas sarjetas com uma pequena flor de sangue nos focinhos pontiagudos; uns, inchados e pútridos; outros, rígidos e com bigodes ainda eriçados. Na própria cidade, eram encontrados em pequenos montes nos patamares ou nos pátios. Vinham, também, morrer isoladamente nos vestíbulos das repartições, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés.

      Nossos concidadãos, estupefatos, encontravam-nos nos locais mais frequentados das cidades. Passavam de mão em mão diversas profecias atribuídas a magos ou a santos da Igreja Católica. Editores da cidade viram rapidamente o proveito que poderiam tirar desta mania e difundiram em largas edições os textos que circulavam. Quando a própria história já não tinha profecias, encomendaram-nas a jornalistas, que, ao menos neste ponto, se mostraram tão competentes como os seus colegas de séculos passados. Nostradamus e Santa Odília foram, assim, consultados quotidianamente, e sempre com proveito. O que, de resto se tornava comum a todas as profecias era o facto de elas serem, finalmente, tranquilizadoras. Só a peste o não era. Estas superstições substituíam, pois, para os nossos concidadãos a religião.

 *
      Teriam nossos concidadãos, pelo menos os que mais haviam sofrido, se habituado à situação? Não seria inteiramente justa essa afirmação. Seria mais exato afirmar que, tanto moral quanto fisicamente, sofriam. No começo da peste, lembravam-se nitidamente do ente que haviam perdido e sentiam saudade. Mas, se se lembravam nitidamente do rosto amado, do seu riso, de determinado dia que agora reconheciam ter sido feliz, tinham dificuldade de imaginar o que o outro podia estar fazendo no próprio momento em que o evocavam e em lugares de agora em diante tão longínquos. Em suma, nesse momento, tinham memória, mas uma imaginação insuficiente. Na segunda fase da peste, perderam também a memória. Não que tivessem esquecido esse rosto, mas, o que vem a dar no mesmo, ele perdera a carne, já não o sentiam no interior de si próprios.

 *
     Pela primeira vez, os separados não tinham repugnância em falar dos ausentes, em usar a linguagem de todos, em examinar sua separação sob o mesmo enfoque que as estatísticas da epidemia. Enquanto, até então, tinham subtraído ferozmente seu sofrimento à desgraça coletiva, aceitavam agora a confusão. Sem memórias e sem esperança, instalavam-se no presente. Na verdade, tudo se tornava presente para eles. A peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes.

 *
      Durante alguns minutos, avançaram com a mesma cadência e o mesmo vigor, solitários, longe do mundo, libertados enfim da cidade e da peste. Rieux foi o primeiro a parar e voltaram lentamente, a não ser num momento em que entraram numa corrente gelada sem nada dizerem, ambos aceleraram os movimentos fustigados por esta surpresa do mar. Novamente vestidos, partir, sem terem pronunciado uma palavra. Mas entendiam-se, era suave a lembrança dessa noite. Quando viram de longe a sentinela da peste, Rieux sabia que Tarrou dizia para si próprio, como ele, que a doença acabava de esquecê-los, que isso era bom, e que agora era preciso recomeçar. Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que esta multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a Peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.

 Trechos do livro A peste, selecionados por José  Aléssio

Paulinho da Viola

 Um mestre do verso, de olhar destemido,

disse uma vez, com certa ironia :
"Se lágrima fosse de pedra
eu choraria"

Mas eu, como sempre perdido
Bêbado de sambas e tantos sonhos
Choro a lágrima comum,
Que todos choram

Embora não tenha, nessas horas,
Saudade do passado, remorso
Ou mágoas menores
Meu choro,
Dolente, por questão de estilo,
É chula quase raiada
Solo espontâneo e rude
De um samba nunca terminado
Um rio de murmúrios da memória
De meus olhos, e quando aflora
Serve, antes de tudo,
Para aliviar o peso das palavras

Que ninguém é de pedra

Adriana Falcão

Ele não era mais doido do que as outras pessoas do mundo, mas as outras pessoas do mundo insistiam em dizer que ele era doido. Depois que se apaixonou por uma garrafa de plástico de se carregar na bicicleta e passou a andar sempre com ela pendurada na cintura, virou o Doido da Garrafa. O Doido da Garrafa fazia passarinhos de papel como ninguém, mas era especialista mesmo em construir barquinhos com palitos. Batizava cada barco com um nome de mulher e, enquanto estava trabalhando nele, morria de amores pela dona imaginária do nome. Depois ia esquecendo uma por uma, todas elas, com exceção de Olívia, uma nau antiga que levou dezessete dias para ser construída. Batucava muito bem e vivia inventando, de improviso, músicas especialmente compostas para toda e qualquer finalidade, nos mais variados gêneros. Gostava muito de observar as pessoas na rua, do cheiro de café. Escrevia cartas para ninguém, umas em prosa, outras em poesia, como mero exercício de estilo. Tinha mania de dar entrevistas para o vento e já sabia a resposta de qualquer pergunta que porventura alguém pudesse lhe fazer um dia. Tinha angústia matinal, uma depressão no meio da tarde que ele chamava de cinco horas, porque era a hora que ela aparecia, e uma insônia crônica a quem chamava carinhosamente de Proserpina. Sentia uma paixão azul dentro do peito, desde criança, sempre que olhava o mar e orgulhava-se muito disso. Acreditava no amor, mas tinha vergonha da frase. Às vezes falava sozinho. Preferia tristeza à agonia. Todas as noites, entre oito e dez e meia, era visto andando de um lado para o outro da rua. (Preferia que ninguém percebesse que ele não tinha para onde ir.) Enquanto andava, repetia dentro da cabeça incessantemente a palavra ecumênico sem ter a menor ideia da razão pela qual fazia isso. Não era mais doido do que as outras pessoas do mundo, mas sempre que ele passava as outras pessoas do mundo pensavam, lá vai o Doido da Garrafa, e assim se esqueciam das suas próprias garrafas um pouquinho.

Augusto dos Anjos

 Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.

Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede…”
– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Marcelo Rubens Paiva

  Ninguém mais conversa no metrô. Ninguém mais olha o vazio, o mapa das linhas, os anúncios, as luzes passando em sentido contrário, a própria imagem refletida nas janelas, quem entra, quem sai,  quem chora, quem dorme, quem se dirige a uma manifestação de protesto, ou de apoio, por alguém que sempre quis, e que nunca tomou a iniciativa, quem acaba de conseguir um emprego, quem não desce em nenhuma estação, e quer apenas dar um tempo, viver sem sentir a vida, percorrer túneis subterrâneos de uma grande metrópole, em que, apesar da multidão, se sente sozinho.

     Ninguém troca ideias, opiniões divergentes, ninguém debate, é convencido de algo, muda de opinião. A bolha que nos cerca nos protege. É como um escudo contra o que nos agride. A cidade nos agride. O ódio nos agride. Todos nela nos agridem. Suas vozes incomodam.

     Preferimos a música preferida da lista previamente selecionada que sai dos meus fones de ouvido conectados por um cabo ao meu universo pessoal, em que sou Deus, em que decido o que ler e ouvir, o que ver e curtir, o que assistir e ignorar, graças à opção “bloqueio”, à opção “excluir”, à opção “apagar perfil”, “colocar em modo avião”, “não receber notificações”.

     Há uns anos, não pegava celular no metrô. Os passageiros conversavam, paqueravam, miravam o vazio, redescobriam estações no mapa das linhas, checavam os cabelos na imagem refletida, quem entrava, saía, vestia o que, era fã de Ramones, Pink Floyd, Metallica, Batman, Jack Daniel’s, quem estava bem, feliz, chorava, dormia, quem, pelo perfume, banho tomado, roupa bonita, estava a caminho de um encontro secreto, fora beijada, por alguém surpreendente, inexplicável, paixão que nasceu do fundo da alma, quem descobriu que não ama mais, descobriu que estava grávida e não consegue mais dormir, tensa, quem acabou de perder um emprego, a estação, o sentido de viver, porque se sente sozinho, apesar da multidão nas estações.

     Trocavam-se ideias, opiniões, debatia-se, mudavam as convicções de alguém, apresentavam outros pontos de vista, experiências e erros da história que se repetem. A bolha é nosso mundo agora. E o que tem de tão urgente nos celulares, que não era na década anterior? O que é inadiável?
A bolha em si, e nela que se quer estar: protegido e isolado. O mundo é muito louco, tem muito louco por aí. E boa parte, quando chega à sua estação, continua nela, caminha olhando ou falando para seu universo pessoal. Haverá um dia em que as pessoas voltarão a interagir? O mundo corre perigo.

     Pelos grandes pilares da rede social (Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp), você recebe notícias de quem quer que lhe dê notícias, não de quem lhe desagrada, discorda, coloca em dúvida, incomoda, atrapalha a lógica da ética de vida que você demorou para adquirir.
A bolha foi criada por você e pela matemática. As redes registram o que você gosta. Deixa aquilo que você não gosta em segundo plano e o bombardeia de informações apenas de quem ou o que você gosta. São os misteriosos algoritmos, a lógica da rede.

Olinda Beja

 Na minha terra há um rio

que nunca vai ter ao mar
trago-o eu dentro do peito
e o meu corpo é o seu leito
onde ele se pode espraiar

na minha terra há um pranto
de uma mãe que o não secou
escorre nas minhas veias
como o mar por entre as areias
que o oceano afundou

na minha terra há um porto
com barcos por atracar
as amarras trago-as eu
no destino que me deu
outro porto p'ra embarcar

na minha terra há um mundo
diferente deste onde estou
mas não o trago comigo
ficou para meu castigo
no mundo em que não estou


*****

Tenho uma ilha por dentro de mim
cheia de corais e praias sem fim
que chora e repete na longa distância
os dias e as horas que me deu na infância
tenho as canoas correndo na alma
e bebo em orgias vinho de palma
na roça à noite varrendo o terreiro
eu falo e discuto com piadô feiticeiro
santo é o seu nome e santa é a gente
que as ilhas povoam bendito o seu ventre
tenho uma ilha por dentro de mim
cheia de floresta   de mato   capim
que chora e repete no porto de abrigo
os dias e as horas que eu trouxe comigo



Filmes "psicológicos"

 Filmes “psicológicos”


Amor e Restos Humanos, Denys Arcand
Este filme mostra uma trama de amor, assassinatos e desencontros.
Numa visão pouco otimista das relações humanas, o cineasta canadense Denys Arcand vai fundo em temas como obsessão, solidão e egoísmo.

Betty Blue, Jean-Jacques Beineix
Zorg é um faz-tudo que cuida de vários bangalôs de praia na França. Ele vive uma vida tranquila, trabalhando e escrevendo no seu tempo livre. Um dia, aparece em sua vida, uma jovem tão linda quanto selvagem e imprevisível. Inesperadamente, o jeito irreverente de Betty começa a fugir do controle. Zorg percebe que a mulher que ama está lentamente ficando louca.

Bicho de Sete Cabeças, Laís Bodanzky
Seu Wilson (Othon Bastos) e seu filho Neto (Rodrigo Santoro) possuem um relacionamento difícil, com um vazio entre eles aumentando cada vez mais. Seu Wilson despreza o mundo de Neto e este não suporta a presença do pai. A situação entre os dois atinge seu limite e Neto é enviado para um manicômio, onde terá que suportar as agruras de um sistema que lentamente devora suas presas.


Christiane F, Uli Edel
Um retrato cruel e amargo de uma geração que tem no uso de drogas a sua opção de fuga e sobrevivência.
Na cidade de Berlin nos anos 70, Christiane (Natja Brunckhorst), uma linda adolescente, mora com sua mãe e irmã menor em um típico apartamento da cidade. Ela é fascinada para conhecer a “Sound”, uma nova e moderna discoteca. Apesar de menor de idade ela pede a sua amiga para levá-la ao local. Lá ela conhece Detlev (Thomas Haustein), através de quem se aproxima do terrível mundo das drogas. Indo rapidamente do álcool à maconha e outros entorpecentes, Christiane passo a passo mergulha cada vez mais profundamente no submundo do vício e da prostituição, colocando-se à beira da morte. Um filme de cenas fortes e muito reais, que nos transmite os horrores do mundo do vício.

Cidade dos Sonhos, David Lynch
Um acidente automobilístico na estrada Mulholland Drive, em Los Angeles, dá início a uma complexa trama que envolve diversos personagens. Rita (Laura Harring) escapa da colisão, mas perde a memória e sai do local rastejando para se esconder em um edifício residencial que é administrado por Coco (Ann Miller). É nesse mesmo prédio que vai morar Betty (Naomi Watts), uma aspirante a atriz recém-chegada à cidade que conhece Rita e tenta ajudar a nova amiga a descobrir sua identidade. Em outra parte da cidade o cineasta Adam Kesher (Justin Theroux), após ser espancado pelo amante da esposa, é roubado pelos sinistros irmãos Castigliane.

Cova Rasa, Danny Boyle
Alex (Ewan McGregor), David (Christopher Eccleston) e Juliet (Kerry Fox), que dividem um apartamento, concordam em permitir que Hugo (Keith Allen), um desconhecido, vá morar com eles, mas logo ele aparece morto, vítima de overdose. Entre seus pertences existe uma mala cheia de dinheiro, que faz com que a vida deles seja alterada de forma brutal.

Encaixotando Helena, Jennifer Chambers Lynch
Nick Cavanaugh (Julian Sands), um famoso cirurgião, fica obcecado pela beleza de Helena (Sherilyn Fenn), uma prostituta. Ela o rejeita, mas mesmo assim ele tenta convencê-la que um necessita do outro. No entanto ela tem outros planos, mas acaba sendo vítima de um terrível acidente que a deixa nas mãos do médico, que tem então uma macabra ideia para não mais perdê-la.

Império dos Sentidos, Nagisa Ôshima
O diretor japonês Nagisa Oshima apresenta neste seu polêmico filme um ritual erótico a partir da relação obsessiva entre um homem e uma mulher. Ele está sexualmente ligado à mulher que ama de tal forma que poderá até morrer por ela. Por meio desse relacionamento ensandecido, Oshima procura demolir os preconceitos trazidos pela indústria da pornografia. O seu erotismo não tem limites visuais, mas não é uma exploração meramente pornográfica.

Não Amarás, Krzysztof Kieslowski
Jovem de 19 anos munido de uma luneta começa a observar a vida da sua vizinha (uma mulher madura), que mora defronte ao seu apartamento. Ele fica obcecado por ela e enquanto observa sua vida sexual (na qual o amor não existe), ele esquematiza subterfúgios para se aproximar dela. Com o tempo ele revela seu amor, mas ela o humilha e algo surpreendente acontece nesta relação.

Não Matarás, Krzysztof Kieslowski
Jacek é um jovem desempregado. Certo dia, sem motivo aparente, ele sai pelas ruas de Varsóvia e resolve matar um motorista de táxi. Um advogado criminalista tenta livrar Jacek da pena de morte, e pelo caminho ele esbarra com um Estado totalitário e uma sociedade ainda mais cruel que seu próprio cliente.

O Anjo Exterminador, Luis Buñuel
O Anjo Exterminador é uma das grandes obras-primas do mestre do surrealismo Luis Buñuel (1900-1983), diretor de A Bela da Tarde, O Discreto Charme da Burguesia, entre outros filmes geniais. O ponto de partida do roteiro é dos mais originais da história do cinema. Depois de festa de gala, os ricos convidados, por uma razão inexplicável, não conseguem deixar o local. Conforme os dias, as horas e as semanas se passam, a situação piora. As máscaras e convenções sociais começam a ruir, revelando a falsidade e podridão de cada pessoa. O Anjo Exterminador é um daqueles filmes para toda a vida. Essencial na coleção de qualquer cinéfilo.

O Enigma de Kaspar Hauser, Werner Herzog
Kaspar Hauser é um jovem que foi trancado a vida inteira num cativeiro, desconhecendo toda a existência exterior. Quando ele é solto nas ruas sem motivo aparente, a sociedade se organiza para ajudar Kaspar, que sequer conseguia falar ou andar, mas este logo acaba se tornando uma atração popular.

O Garoto de Bicicleta, Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne
Um garoto de quase 12 anos, Cyril (Thomas Doret), não quer aceitar que perdeu o pai para sempre. Revoltado, agressivo, o menino se agarra à cabeleireira Samantha (Cécile de France), que percebe seu desespero e procura dar a ele o amor de que necessita.

Os Idiotas, Lars von Trier
Um grupo de pessoas junta-se numa grande residência e dedicam-se a procurar o idiota que está dentro de cada um, entrando em “paranóia”, babando-se e passando em público por verdadeiros deficientes mentais, como forma de se libertarem dos seus problemas e de chocarem as instituições burguesas.

Procurando Elly, Asghar Farhadi
Depois de muitos anos vivendo na Alemanha, Ahmad volta ao Irã. Sua amiga Sepideh organiza uma viagem com ele e todos os amigos para passar três dias nas margens do mar Cáspio. Sem avisar o grupo, convida uma estranha, Elly, professora de sua filha em uma creche. No segundo dia, quando tudo parece estar indo bem, um estranho incidente acontece e Elly desaparece. A atmosfera alegre e a harmonia se dissolvem, enquanto os amigos tentam descobrir o motivo do estranho desaparecimento.

Vestígios do Dia, James Ivorya
Stevens (Anthony Hopkins) é o perfeito mordomo inglês. Agora empregado pelo Sr. Lewis (Christopher Reeve), o novo proprietário americano de Darlington Hall, Stevens passou a maior parte de sua vida servindo ao Lorde Darlington (James Fox), o anfitrião de inúmeras conferências internacionais de prestígio nos anos 30. Somente com a declaração da guerra, depois de 1939, é que o envolvimento de Lorde Darlington com os nazistas foi descoberto. Agora, vinte anos depois, Stevens percebe que sua fé cega e dedicação ao dever foram em vão, desperdiçando sua vida pessoal. Por muitos anos manteve um relacionamento intenso com a jovem e atraente governanta, Srta. Kenson (Emma Thompson). Mas seu senso de dever o levou a negar suas emoções… 


Flávio Henrique



Gilberto Gil

 Por ser de lá

 Do sertão, lá do cerrado
 Lá do interior do mato
 Da caatinga do roçado
 Eu quase não saio
 Eu quase não tenho amigos
 Eu quase que não consigo
 Ficar na cidade sem viver contrariado
 Por ser de lá
 Na certa por isso mesmo
 Não gosto de cama mole
 Não sei comer sem torresmo
 Eu quase não falo
 Eu quase não sei de nada
 Sou como rês desgarrada
 Nessa multidão boiada caminhando a esmo

Emanuel Medeiros Vieira

 – “Você gostaria de ouvir um verso?”

“Eu não entendo nada de poesia. Só planto flores.”
E a jovem morena sorriu para o homem velho que estava diante dela.
Ele estava muito doente. Iria morrer em breve. E conheceu Júlia, a morena, num lugar na periferia da cidade, onde se plantavam e vendiam rosas e outras flores. Não, não queria nada de grandioso ou napoleônico, como dizia, antes da “viagem definitiva”.
Não tinha família, filhos, mulher, não precisava se preocupar com seguros ou pecúnia para descendentes. Aspirava algo raro, até estranho para o comum dos mortais (de hoje): “tornar mais puras as palavras da tribo”, como dizia o poeta.
Seu nome era Jarbas, tinha 70 anos e queria apenas ler versos (não explicá-los; ele sabia que isso era impossível). Queria ler individualmente, nada de grupos ou multidões. Só acreditava nessas relações individuais, “pequenas”, como classificava. Foi algo instantâneo. Não planejado, até mágico: os olhos penetrantes da moça, negros, fundos, que não se desviam do interlocutor, impressionaram Jarbas.

Queria plantar algumas rosas no quintal de seu sobrado, também no subúrbio. Morava sozinho. Naquele momento crepuscular, “definitivo”, de sua vida, tão tardio, sentiu um indefinível tremor quando viu a moça. Algo que nunca tivera na vida, ele que sempre fora tão ponderado e racional. Ele ali, num lugar onde se plantavam e vendiam flores.
E leu para Júlia: “Coração oposto ao mundo, Como a família é verdade!”
Leu e não olhou para ela. Ela tratava de duas rosas. Não havia movimento na floricultura. Era manhã de Quarta-Feira de Cinzas, e o céu estava nublado. A moça nada disse. Apenas sorriu. Foi a vez de ele sorrir. Ela falou: “Não entendi.” – “Eu talvez não tenha entendido também. Mas achei os versos muito belos”.
Ele queria ter falado para ela: “só quero sentir.” Repetiu para si mesmo: “Coração oposto ao mundo, Como a família é verdade!”
Ele escolheu algumas rosas ainda frescas, pareciam cheias do sereno da madrugada, gotas de água escorrendo nas flores vermelhas. Jarbas pegou um caderninho. Leu: – “Às vezes ouço o passar do vento, e só de ouvir o vento passar vale a pena ter nascido.”
Júlia pediu que ele lesse de novo. Jarbas releu. – “Que bonito!”, ela falou, e disse “que bonito!”, com enorme sentimento, algo de dentro com força entranhada. Isso fez o velho se emocionar, este homem que talvez não tivesse mais que meio ano de vida.
Ele pegou um lenço vermelho e enxugou duas lagrimas. Só conseguiu dizer: “Lemos para saber que não estamos sós.”
Júlia percebeu sua emoção, não era moça culta, mas sensível, e sem que ele pedisse tirou da garrafa térmica um chá e ofereceu-lhe numa pequena xícara. O velho cheirou: “É de jasmin”, descobriu e sorriu. A moça também sorriu. – “O senhor é poeta?”, ela perguntou.

– “Não, mas gosto muito de ler e de observar as pessoas.” Ela pediu que ele repetisse as palavras de Fernando Pessoa: “Às vezes ouço o passar do vento, e só de ouvir o vento passar vale a pena ter nascido.” – “É verdade”, ela disse, novamente com um sentimento tão forte que impressionou Jarbas. A manhã de Quarta-Feira de Cinzas estava entranhada no inconsciente coletivo como um tempo de tristeza, de final de festa, de ressacas físicas e morais.
Para ele não: triste era a alegria química, o sexo mercantilizado, a banalização dos sentimentos, a alegria “fingida”. Aquela quarta-feira, que seria tão rotineira, tão igual às outras, adquiria uma voltagem emocional e afetiva tão intensa, um fervor tão raro e forte (como uma prece que fosse fundo, lá dentro da gente, um fervor tão raro e forte, e conseguisse provar que não se está só no mundo).
O acaso: ir comprar flores para o sítio e encontrar aquela moça, sentir essa emoção que chegava a doer no corpo. Um momento como aquele valia uma existência toda. Pensou nos gestos habituais: sair para ir ao médico, dar comida aos gatos, tomar remédios, escutar o ronco dos caminhões, contemplar de longe a cidade grande, e viver essa vida só, cercado de livros e plantas.
O velho pensou na morte de todos os homens e na sua própria morte. Lembrou-se do pensamento de José J. Veiga: “Do lado de lá ficamos expostos aos ventos do desconhecido. Exatamente como do lado de cá.”
– “O senhor mora aonde?”, ela indagou. – “Do outro lado da estrada”. Não tinham muitas palavras. Mas se olhavam com imensa ternura e simpatia. – “Sua família mora aqui também?”, a moça insistiu. – “Não tenho família.” Jarbas falou sem qualquer carga de tristeza ou autopiedade. Até sorriu, de maneira um tanto camuflada, mas perceptível para quem tivesse bom olhar.
Ele relia o Padre Vieira: “Levanta-se o pó com o vento da vida, e muito mais com o vento da fortuna; mas lembre-se o pó que o vento da fortuna não pode durar mais que o vento da vida, e que pode durar muito menos, porque é mais inconstante.” (“Sermão da Quarta-Feira de Cinza”)

Fez uma pausa, respirou: “Sois pó, e em pó vos haveis de converter.” O velho preparou-se para o ritual da despedida. Pagou as rosas, beijou a testa de Júlia. Ela pediu: “Volte sempre”, e o apelo não era algo estatutário, formal: vinha de dentro do seu coração. Ela queria que ele voltasse mesmo.

No final da vida, ele teve a percepção de que o amor não é o contrário da solidão: é a solidão dividida, habitada, iluminada pela solidão do outro. Jarbas leu: “O amor é sempre solidão, não porque toda solidão seja amante, mas porque todo amor é solitário. Ninguém pode amar em nosso lugar, nem como nós. Esse deserto em torno do objeto amado é o próprio amor.”

O velho já estava indo embora. Voltou-se. Queria dar um último beijo na testa da moça. Como seu pai sempre fazia quando ele chegava da escola, e quando ia dormir e pedia a bênção. “Toma a minha bênção, filho”, o pai dizia. E foi embora. Sabia: era a última vez que via a moça. Olharam-se. Ele “sentiu”, enquanto andava pela estrada deserta – aquela estrada cheia de poeira-, que ela estava olhando para ele; pensou como tivesse tido uma descoberta fundamental, seminal: ter tido aquela manhã, ter conhecido aquela moça, havia justificado uma vida inteira.

Como ter escutado o vento.


Fernando Pessoa

 A aranha do meu destino

Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir.
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte.