Ferreira Gullar

Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira. Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem. Traduzir-se uma parte na outra parte – que é uma questão de vida ou morte – será arte? ***** Do mesmo modo que te abriste à alegria abre-te agora ao sofrimento que é fruto dela e seu avesso ardente. Do mesmo modo que da alegria foste ao fundo e te perdeste nela e te achaste nessa perda deixa que a dor se exerça agora sem mentiras nem desculpas e em tua carne vaporize toda ilusão que a vida só consome o que a alimenta. ***** Aqui me tenho/ Como não me conheço/ nem me quis/ sem começo/ nem fim/ aqui me tenho/ sem mim/ nada lembro/ nem sei/ à luz presente/ sou apenas um bicho/ transparente ***** Onde começo, onde acabo, se o que está fora está dentro como num círculo cuja periferia é o centro? Estou disperso nas coisas, nas pessoas, nas gavetas: de repente encontro ali partes de mim: risos, vértebras. Estou desfeito nas nuvens: vejo do alto a cidade e em cada esquina um menino, que sou eu mesmo, a chamar-me. Extraviei-me no tempo. Onde estarão meus pedaços? Muito se foi com os amigos que já não ouvem nem falam. Estou disperso nos vivos, em seu corpo, em seu olfato, onde durmo feito aroma ou voz que também não fala. Ah, ser somente o presente: esta manhã, esta sala.